Silas Corrêa Leite é natural de Itararé, São Paulo,
e já publicou textos críticos, sátiras, ensaios, crônicas,
contos, poemas, entre outros escritos, em aproximadamente 500 sites brasileiros
e estrangeiros. Escreveu O rinoceronte de Clarice, um livro interativo que foi
objeto de diversos estudos acadêmicos, dentre eles uma tese de doutorado
na Universidade Federal de Alagoas. São de sua autoria os livros Porta-Lapsos,
de poemas; e Campo de trigo com corvos, de contos.
O texto Camelo foi publicado inicialmente no site do Jornal O Estado de São
Paulo e posteriormente passou a integrar a coletânea de crônicas
intitulada O homem que virou cerveja, publicada em São Paulo pela Giz Editorial,
em 2009. O referido livro é resultado da premiação do autor
em primeiro lugar no "Concurso Valdeck Almeida de Jesus".
A crônica é narrada em primeira pessoa, no tempo presente, por um
camelo, narrador-personagem do universo oriental que dialoga com um provável
leitor ocidental, provocando-o para que este saia de sua passividade diante dos
fatos que o cercam e assuma uma atitude mais crítica, sobretudo em relação
à constante violência que assola o planeta e às recorrentes
guerras no Oriente, muitas destas resultantes de ataques oriundos do Ocidente.
O texto surpreende desde o início, a começar por este narrador inusitado,
que observa o que acontece ao seu redor e revolta-se contra as injustiças
cometidas pelos seres humanos, dos quais se esperaria certa racionalidade. Entretanto,
esta vem justamente do camelo, através da reflexão e análise
da realidade e da manifestação de suas ideias. Já no primeiro
parágrafo, o leitor é convidado a pensar sobre as vítimas
inocentes das guerras, principalmente nas constantes lutas travadas no Oriente,
muitas destas protagonizadas ou apoiadas por líderes políticos ocidentais:
Pois é, mano, você que é um baita animal racional, de capacete,
carcova, gravata, dólmã-de-tala, elmo ou turbante, deve estar aí
se assuntando com esse deserto de acontecências ao deus-dará, a bem
dizer, entre atropelos de idas e vindas aceleradas, nuvens de areia, torres pegando
fogo, crianças inocentes explodindo, mulheres grávidas vitimadas,
prédios de instituições civis se desmontando ... . (p. 39)
Este camelo-narrador conduz o leitor à visão dos horrores provocados
pelas guerras, realizando sua travessia pelo espaço desértico e
descrevendo o que observa. Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, em seu Dicionário
de símbolos (1996), o camelo, por ser uma montaria que auxilia na travessia
do deserto, conduzindo o homem de um oásis a outro, possibilita o alcance
do centro oculto, da Essência divina. Nessa perspectiva, o camelo-narrador
cumpre sua função, pois desperta a sensibilidade dos leitores para
situações vivenciadas por inúmeros seres humanos, devido
à guerra, e mostra que, ao aceitarem passivamente tais circunstâncias,
não deixam de compactuar com esta realidade. Ao despertar para o sofrimento
alheio e se interessar por ele, de alguma forma o leitor aproxima-se da Essência
divina.
Nesse sentido, há um convite realizado pelo narrador para o leitor, sobretudo
o ocidental, a fim de que este saia de seu lugar confortável de observador
e entre em contato com a alteridade, com o Outro, respeitando seus valores e crenças
e não se colocando como alguém superior, detentor das verdades absolutas,
atitude que muitas vezes justifica atos violentos, como as guerras. Considerando
as contribuições teóricas de Lévi-Strauss acerca do
etnocentrismo, em textos como Raça e História (1952), pode-se dizer
que o camelo propõe que o leitor abandone uma visão etnocêntrica,
que enxerga o outro a partir de seus próprios valores, e adote uma postura
de respeito à diversidade.
As descrições realizadas pelo camelo contam com o auxílio
de dois outros animais: a águia e o gafanhoto, que lhes relatam acontecimentos
de lugares por onde ele não passa. Se recorrermos mais uma vez ao Dicionário
de símbolos (1996), observaremos que a águia constitui o mensageiro
da mais alta divindade, ao passo que o gafanhoto tem um simbolismo ligado a pragas
e devastações. Esta dualidade também é uma característica
do próprio camelo-narrador. Este, assim como o gafanhoto, tem os pés
firmes num chão inóspito. Além disso, encontra-se diante
de uma realidade que o entristece e revolta-o. No entanto, apesar de tudo, assim
como a águia, consegue olhar para o alto e sonhar com "um mundo em
que todos possam viver em paz".
Entre suas reflexões, o camelo deseja avidamente ganhar voz através
de um "ventríloquo", "mágico ledor de lábios",
"bruxo sem véus" ou mesmo de um "anjo poeta". Tal desejo
se concretiza, pois o camelo torna-se o narrador de sua história na crônica
escrita por Silas Corrêa Leite. O escritor é o "bruxo sem véus"
e o "anjo poeta" que possibilita a escritura e a materialização
do pensamento do camelo. Há uma fronteira tênue, em que se misturam
o narrador ficcional camelo e o autor da crônica, também poeta, Silas
Corrêa Leite. As vozes do cronista e do narrador misturam-se, realizando
uma escritura bifocal, por vezes ácida, por vezes tomada por profundo lirismo.
No final do conto, há uma provocação ao leitor: "Fique
aí, seu camelo engravatado". Ao ser chamado de camelo e convidado
a permanecer onde está, o leitor é convidado a pensar no quanto
os seres humanos têm demonstrado menos racionalidade que os animais...
Percebe-se, dessa forma, que o cronista, a partir do relato do cotidiano de um
camelo no deserto, capta a essência do sofrimento humano causado pela violência
da guerra, de forma singular e instigante, de maneira a levar o leitor a uma reflexão
mais profunda sobre esta problemática e assumir uma postura mais crítica
e menos passiva diante dos fatos.
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