A Garganta da Serpente

Acácio Souto

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EPITÁFIO

Que levasse meus castanho-avermelhados,
meu coração na palma de sua mão,
meu sétimo sentido para chorar,
meu pingo de alegria

deixou-me aos soluços
morto, vilipendiado
espancado pelo demônio
sob o sangue da lua cheia

oh, como dói, Deus,
o teu cuspe de fogo
ver teu olhar de desprezo
e teus anjos zombando minha dor

aquela facada que me destes
aquela surra de rosas gigantes
à noite sangra, belisca,
mata-me lentamente

e os fantasmas amontoados
sorriem feito demônios
os fantasmas querem
que eu engula minhas lágrimas

e o catarro em meu bigode
escorre mais durante a noite
nos becos dos pesadelos
o medo me ama loucamente

belisca, oh como belisca
me faz ajoelhar
e apertar os dentes
me faz engolir catarro

a vida dentro de uma veia:
um caminho para o desconhecido
outro para a dor.
Há vida dentro de uma veia?

o diabo tem um rabo
o diabo tem um rabo
Deus puxou o rabo do diabo
e o jogou dentro de um terno preto

alguém deve está aqui
minha nuca arrepia, é madrugada
alguém que tento olhar
no relance de um olhar

não posso olhar para trás
minha nuca arrepia, é madrugada
alguém me observa
escrever como um deus

alguém gosta de me ver
alguém está tão perto, é madrugada
alguém que não posso ver
mas sinto, alguém me observa

amedrontado, ofegante
quem está atrás, em pé
veio de longe
das trevas, do silêncio

do choro, do martírio
e se faz grande no fogo
no chão de brasas
uiva maldito cão de olhar perverso!

o fogo queima meu corpo
eu tenho medo, é madrugada
alguém me assiste escrever
agachado, me cheirando

fede como restos mortais
e me cheira, agachado
o fedorento gosta de minha nuca
e sorri, seus olhos brilham

seus dentes podres
no reflexo do vidro
parece babar de agonia
posso vê-lo, seus olhos brilham

não devo olhar para trás
ele sabe, já percebeu
está quente o meu corpo
tenho medo, estou imóvel

um anjo fedorento
miserável soldado do terror
me faz lembrar as gosmas
de um defunto dentro de minha boca

e o beijo no catarro dos mortos
e beber o catarro dos mortos
e chupar o sangue dos lábios
oh doce vinho podre dos cemitérios!

que no reflexo do vidro
se faz vivo, pulando
e lambendo as virilhas
e coçando a cabeça com os pés

fede como catacumba
lábios pretos, sangue preto
parece um cão que é homem
e gosta de me fazer companhia

me observa, não diz nada
não critica meus poemas
no reflexo do vidro
mostra-se atento, o fedorento

ele me ama como o medo
ele tem o nariz preto
e faz barulho quando respira
e bebe o próprio catarro

ele não pica os olhos
mas sorri, mostra os dentes
e depois de ler o que escrevi
ele vai embora e olha para trás

com sua pele de lobisomem
ele não dorme, mas foi dormir
ele não é um cãozinho manso
ele cheira a merda de defunto

e lambe o catarro podre
mas gostou de meus poemas
e disse que Shakespeare
me odeia que dobra os olhos.


(Acácio Souto)


voltar última atualização: 03/11/2008
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