A Garganta da Serpente

Bernardo Guimarães

Bernardo Joaquim da Silva Guimarães
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Invocação à saudade

Oh! filha melancólica dos ermos,
Consolo extremo, e amiga no infortúnio
Fiel e compassiva;
Saudade, tu que única inda podes
Nest'alma, erma de amor e de esperança,
Um som vibrar melodioso e triste,
Qual vento, que murmura entre ruínas,
Os gemebundos ecos acordando;
Vem, ó saudade, vem; - a ti consagro
De minha lira as magoadas cordas.
Quando o sopro da sorte impetuoso
Nos ruge n'alma, e para sempre a despe
Do pouco que há de amável na existência;
Quando tudo se esvai, - ledos sorrisos,
Suaves ilusões, prazeres, sonhos,
Ventura, amor, e até a mesma esp'rança,
Só tu, meiga saudade,
Fiel amiga, jamais nos abandonas!
Jamais negas teu bálsamo piedoso
Às chagas do infortúnio!
Qual de remotas, flóridas campinas
Da tarde a branda aragem
Nas asas nos conduz suave aroma,
Assim tu, ó saudade,
Em quadras mais ditosas vais colhendo
As risonhas visões, doces lembranças,
Com que vens afagar-nos,
E ornas do presente as sendas nuas
Co'as flores do passado.
Não, não é dor o teu pungir suave,
É um triste cismar que tem delícias,
Que o fel aplaca, que nos ferve n'alma,
E o faz correr banhando áridos olhos,
Em mavioso pranto convertido.
No íntimo do peito
Despertas emoções que amargam, pungem,
Mas fazem bem ao coração, que sangra
Entre as garras de austero sofrimento!
................................................................
................................................................
................................................................
................................................................
Agora que do dia a luz extrema
Se expande a frouxo nos calados vales,
Lá do róseo palácio vaporoso
Desce, ó saudade, vem, num desses raios
Que se escoam do ocaso enrubescido,
Envolta em nuvem mística e diáfana,
Lânguido o olhar, a fronte descaída,
Em minha solidão vem visitar-me,
E oferecer-me a taça misteriosa
Onde vertes a um tempo o fel e o néctar.
Agora, que o africano a enxada pondo,
Da terra de seus país saudades canta
Aos sons de tosca lira, e os duros ferros
Da escravidão por um momento esquece,
Enquanto no silêncio desses vales
Soa ao longe a canção do boiadeiro,
E o sabiá na cúpula virente
Ao manso rumorejo da floresta
Mescla o trinar de mágicos arpejos,
Vem, ó saudade, leva-me contigo
A alguma encosta solitária e triste,
Ou ignorado vale, onde só reine
Mistério e solidão;
Junto a algum tronco antigo, em cuja rama
Passe gemendo a viração da tarde,
Onde se ouça o monótono queixume
Da fonte do deserto.
Lá, ó saudade, cerca-me das sombras
De maviosa, plácida tristeza,
Que em lágrimas sem dor os olhos banha;
Vem, que eu quero cismar, até que a noite
Fresco orvalho esparzindo-me na fronte,
De meu doce delírio mansamente
Me venha despertar.


(Bernardo Guimarães)


voltar última atualização: 11/12/2007
13226 visitas desde 25/08/2005
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente