A Garganta da Serpente

Bernardo Guimarães

Bernardo Joaquim da Silva Guimarães
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O sabiá

L'oiseau semble la véritable embléme
du chrétien ici-bas; il pref`ère, comme le
fidèle, la solitude au monde; le ciel à la
terre, et sa voix bénit sans cesse les
merveilles du Créateur
(Chateaubriand)

Tu nunca ouviste, quando o sol é posto,
E que do dia apenas aparece,
Por sobre os ermos píncaros do ocaso,
A orla extrema do purpúreo manto;
Quando lã do sagrado campanário
Já reboa do bronze o som piedoso,
Abençoando as horas do silêncio;
Nesse instante de místico remanso,
De maga soidão, em que parece
Pairar bênção divina sobre a terra,
No momento em que a noite vem sobre ela
Desdobrar o seu manto sonolento;
Tu nunca ouviste, em solitária encosta,
De anoso tronco na isolada grimpa,
A voz saudosa do cantor da tarde
Erguer-se melancólica e suave
Como uma prece extrema, que a natura
Envia ao céu, - suspiro derradeiro
Do dia, que entre sombras se esvaece?
O viandante para ouvir-lhe os quebros
Pára, e se assenta à margem do caminho;
Encostado aos umbrais do pobre alvergue,
Cisma o colono aos sons do etéreo canto
Já das rudes fadigas deslembrado;
E sob as asas úmidas da noite
Aos meigos sons em êxtase suave
Adormece embalada a natureza.
Quem te inspira o doce acento,
Sabiá melodioso?
Que mágoas triste lamentas
Nesse canto suspiroso?
Quem te ensinou a canção,
Que cantas ao pôr do dia?
Quem revelou-te os segredos
De tão mágica harmonia?
Acaso a ausência tu choras
Do sol, que além se sumira;
E teu canto ao dia extinto
Mavioso adeus suspira?
Ou nessas notas sentidas,
Exalando o terno ardor,
Tu contas à meiga tarde
Segredos do teu amor?
Canta, que o teu doce canto
Nestas horas tão serenas,
Nos seios d'alma adormece
O pungir de acerbas penas.
Cisma o vate ao brando acento
De tua voz harmoniosa,
Cisma, e deslembra tristuras
De sua vida afanosa.
E ora n'alma se lhe acorda
Do passado uma visão,
Que em perfumes de saudade
Vem banhar-lhe o coração;
Ora um sonho lhe vislumbra
Pelas trevas do porvir,
E uma estrela d'esperança
Em seu céu lhe vem sorrir:
E por mundos encantados
Lhe desliza o pensamento.
Qual nuvem que o vento embala
Pelo azul do firmamento.
Canta, avezinha amorosa,
Em teu asilo soidoso;
Saúda as horas sombrias
Do silêncio e do repouso;
Adormenta a natureza
Aos sons de tua canção;
Canta, até que o dia morra
De todo na escuridão.
Assim o bardo inspirado,
Quando a eterna noite escura
Lhe anuncia a fatal hora
De baixar à sepultura,
Um adeus supremo à vida
Sobre as cordas modulando,
Em seu leito sempiterno
Vai adormecer cantando.
Colmou-te o céu de seus dons,
Sabiá melodioso;
Tua vida afortunada
Desliza em perene gozo.
No tope do tronco excelso
Deu-te um trono de verdura;
Deu-te a voz melodiosa
Com que encantas a natura;
Deu-te os ecos da valada
Pra repetir-te a canção;
Deu-te amor no doce ninho,
Deu-te os céus da solidão.
Corre-te a vida serena
Como um sonho afortunado;
Oh! que é doce o teu viver!
Cantar e amar eis teu fado!
Cantar e amar! - quem dera ao triste bardo
Assim viver um dia;
Também nos céus os anjos de Deus vivem
De amor e de harmonia:
Quem me dera qual tu, cantor dos bosques,
Na paz da solidão,
Sobre as ondas do tempo ir resvalando
Aos sons de uma canção,
E exalando da vida o sopro extremo
Num cântico de amor,
Sobre um raio da tarde enviar um dia
Minh'alma ao Criador!...


(Bernardo Guimarães)


voltar última atualização: 11/12/2007
13227 visitas desde 25/08/2005
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente