A Garganta da Serpente

Caio Bov

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Eu estava caminhando

queria economizar o dinheiro que gastaria com a tarifa do
metrô
fui, caminhando, da estação São Judas até o CC

                eu precisava caminhar e meu eu também queria
de modo que fomos juntos,
caminhando.

                na frente da igreja de São Judas
vi uma fiel subindo a escadaria
estava com uma calça colada ao corpo,
dessas que se usam em academias,
uma camiseta que mostrava parte de seus grandes seios
seus grandes seios à mostra.
o marido/namorado estava ao seu lado,
segurava sua mão.
procurava um altar para aquela santa.

mais à frente uma senhora passava
por um vagabundo sentado na calçada
"oji é sabú",
disse o mendigo para a senhora
preguiça até para falar
com isso queria justificar a necessidade de uma maior
idiotice naquele dia.
vagabundo de carteirinha trabalha até nos sábados.
era o que ele tentava lhe dizer.

passei por uma pastelaria.
vi uma promoção,
um pastel de carne ou queijo
mais um caldo de cana
por R$3,50.
entrei.

tinha uma fila de espera.
depois de pago,
e de pegar a senha,
estava me dirigindo para uma das mesas e ao mesmo tempo,
guardava meu troco de R$ 1,50, quando esta afro-descendente
velha, mas não tão velha
gorda, mas não tão gorda
tão perfeitamente capaz quanto
eu ou você.
quanto qualquer deficiente físico
(portador de necessidades físicas especiais),
me pediu uma moeda.

                 ela era uma vagabunda experta
pegava os(as) trouxas
no momento de maior fragilidade.
"não dá minha senhora,
estas moedas são minhas",
eu disse.

dar esmolas
é roubar a si próprio.
mendigar seria uma atividade
perdoável
apenas se quem mendigasse
fosse COMPLETAMENTE LOUCO
tão louco
tão idiota
que não seria sequer mesmo
capaz de perdir esmolas

ou de roubar de si próprio.

                passando pela estação Saúde,
vi duas menininhas pintadas.
uns quinze, dezesseis anos.
os narizes arrebitados
as bundinhas também

não olhavam para os lados
não viam as demais pessoas
as perdoei,
eram cegas.

na estação Praça da Árvore,
vi uma japonesa.
ela caminhava alguns metros à minha frente.

eu estava chapado,
ela era,
não tinha nenhuma bunda;
presumi,
devia ter um cu.

ela sabia da sua falta de característica.
Parecia tímida.

                Embora não pudesse ver seu rosto.
passei por ela passando a mão no cabelo e olhando em seus olhos, tentava me mostrar interessado, finalmente, consegui ver seu rosto. Ela era velha e realmente
nada bonita
andando mais rápido do que ela,
(não queria que ela pensasse que eu fosse um tarado)
passei a mão no cabelo e a olhei
com maior firme mesa.
ela baixou seus olhos e,
percebi,
sentiu-se bem.
consegui que ela depositasse
sua felicidade em mim.

depois,
pouco antes da Sagres,
vi
mais uma mulher,
dando uma esmola a um mendigo.

ela havia dado uma nota de cinco,
mas queria dar-lhe três reais.
o vagabundo devolveu-lhe o troco.

na estação Santa Cruz,
tinha um cara sentado sobre um skate.
seus cabelos eram loiros de verdade.
ele era branco,
muito branco
sua pela era branca como a luz do dia:
muito branca.
usava um óculos escuro:
muito escuro
tinha problemas com a claridade.

na estação Vila Mariana
passei por uma mulher,
ela olhava para mim,
quando percebi,
e a olhei,
ela desviou o olhar.
ela venceu.

vencido,
porêm não derrotado,
armei-me.
ampliei o raio de visão.
de longe, vi uma gostosa se aproximando.
fiquei a observando
quando estávamos mais próximos,
ela percebeu,
me olhou.
continuei a olhando,
nos olhos.
tímida, ela desviou seu olhar.
VENCI
... mas (eu) gostaria mesmo,
que ambos tivéssemos perdido.

em pé,
numa lanchonete ao lado da estação Paraíso,
um sujeito com cara e jeito de nordestino
me encarava.
veado ou não (nem quero saber),
O ENCAREI,
e ao mesmo tempo
passei uma mão no nariz,
com a outra cocei o saco
e ainda cuspi no chão.

ele desviou o olhar.
NATURALMENTE O VENCI.

entrei no
Centro Cultural da Cidade de São Paulo,
meu caminho.

(Caio Bov)


voltar última atualização: 19/04/2017
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