Sonho
"Sê sóbria, minha Dor, e mantém-te
mais quieta! "
Baudelaire: trecho do poema Recolhimento, de 'As Flores do Mal'
Pensou em como seria ter um botão
De desligar,
E outro de ligar:
De noite desliga, de dia liga.
Liga-desliga; desliga-liga...
E então suportar o dinamismo estático.
Trabalhar, trabalhar e trabalhar,
Em todas as atividades humanas
A fábrica,
Usar corpo e mente até a morte
E o horror de só poder se
Sonhar lícito de noite, quando se dorme.
Um dia ele decidiu sonhar, e só.
De dia, não iria mais trabalhar.
À noite cuidaria da roupa, da casa, das coisas banais.
Dormiria pela madrugada, acordaria a fazer sonhos,
Sonhos concretos, alucinados,
Sonhos bons, ruins, destruidores, construtores,
Políticos, poéticos, pesadelos, pouco importa:
Sonhos a todo ato.
A cada átimo da realidade tornaria onírico.
E toda hipocrisia foi a pique:
O racionalismo que explica,
O fanatismo e o dogma que justificam,
Os amigos, as mulheres, as convenções,
As agremiações políticas
[ao
centro, à esquerda, à traseira, à direita...]
A tenebrosa "ordem" social:
O redemoinho de mentiras
Sustentado pelo bovino pensamento diurno,
E seus elaborados e sutis maquiavelismos.
E tornou noite o dia,
E desordem a ordem,
E heterogêneo o homogêneo,
E relativo o absoluto,
E análise a síntese,
E luz o obscuro,
E mentira os deuses,
E demônio os papas,
E papel o dinheiro,
E família a humanidade,
E deleite o útil,
E ócio o trabalho...
O despertador tocou.
Apertou o botão de desligar.
[ou
ligar]
A sirene da fábrica soou,
Estridente!
E o estômago reclamou,
Que se usassem os dentes.
O patrão,
Que se usasse a força!
Os amigos e familiares,
Que usasse de resignação.
Os companheiros,
Que usasse de acordos.
E gritaram, imploraram e obrigaram.
E para não mais usar nada,
A não ser o que queria usar,
Decidiu apertar um último botão:
Usou de um tiro ao meio da boca
(2007)
(Chrystian Paiva)
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