A Garganta da Serpente

Fagundes Varella

Luiz Nicolau Fagundes Varella
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A SOMBRA

Longe, longe das águas-marinhas,
Sobre vastas campinas pousada,
Sempre aos raios de um sol resplendente,
Se ostentava risonha morada.

Nas planícies que a vista não vence
Espalhadas pastavam cem reses,
Ora junto das fontes tranqüilas,
Escondidas no mato outras vezes...

Ao portão, de manhã, reunidas,
Meio ocultas no véu da neblina,
O senhor esperar pareciam
Sempre amigo da luz matutina.

E, depois que seu vulto bondoso
Da janela sorrindo as olhava,
Se afastavam contentes, pulando
Sobre a grama que o orvalho banhava.

Quando além das montanhas o dia
Apagava seu raio final,
Acudindo do amo aos clamores
Todo o gado se achava no vale.

E em torno dele um círculo formando
Humildes e silentes,
Cada qual por sua vez se adiantando,
Vinham lamber o sal que apresentavam
As mãos benevolentes,
As mãos benevolentes que adoravam.
E o manso gado as falas lhe entendia
E os tenros bezerrinhos
Saltitavam trementes de alegria
A seus meigos carinhos...

Talvez sondasse nesses pobres brutos,
Sob esses pêlos ríspidos, hirsutos,
Um oculto clarão,
Raio de encarcerada inteligência,
Que a doida, pobre e mísera ciência,
Trucidando sem pena a criação,
Procura sempre, mas procura em vão.

Passaram tempos, e o vaqueiro é morto...
Da velha habitação só muros restam,
E às já despidas, murchas laranjeiras
Espinheiros entestam.

Sobre montões de pedra as lagartixas
Leves se arrastam sobre o musgo vil.
Traidoras vespas nos esteios podres
Formaram seu covil.

O sol, que outrora derramava em torno
Raios de luz, torrentes de alegria,
Hoje atira do espaço ao lar deserto
Um riso de ironia.

Não mais perfumes pelos ares giram,
Não mais os ventos suspirando passam,
Somente impuro odor, silvo de serpes
No ambiente perpassam.

Parece que ao pairar nesses lugares
Todo o seu ódio o estrago sacudira,
E o espírito do mal no chão gretado
A saliva cuspira.

Viajor, viajor, não te aproximes
Do ermo sítio que o terror marcou,
A mão de Deus talvez ardendo em iras
Pesada ali tocou.

Porém quando no ocidente
Vai baixando o orbe imortal,
As reses sempre constantes
Se ajuntam todas no vale.

E nessa mesma paragem,
Onde as chamava o senhor,
Talvez do defunto à sombra
Reúnem-se ao derredor.

E mugem, mugem debalde,
Tristonhas cavando o chão,
Fitando doridos olhos
No astro rei da amplidão.

Mas o sol não as escuta,
Mas o sol caindo vai,
Imagem de um deus cruento,
Cruenta imagem de pai.

E o caminheiro, que ao longe
Das serras descendo vem,
Não passa perto das ruínas,
Procura outra senda além.


(Fagundes Varella)


voltar última atualização: 23/12/2005
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