A Garganta da Serpente

Fernando Martinho Guimarães

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Cartografia ou Paisagem com Mulher

Atravessei a manhã
e vi-me no espelho
de mim era a sensação
do que fui fugidio
memória-sonho fio de terra
Atravessei mórbidos costumes
a presenciei a terra dos almanaques
enciclopédias-tudo
Algures estava
num raio de sol
que na linha de comboio
a morte caminha
na forma de uma rapariga
de madeixa no lado esquerdo
onde o olhar no lado direito fixa
e se hipnotiza
Pensar que a morte é aquela rapariga
ou aquela semi-face
que não mais verei
A morte é isso
a sedimentação da enciclopédia
o pó-ironia de um gesto
a rapariga que por ser miragem
diz-se que não existe
o comboio que ao passar
desaparece na paisagem
montanha casas dispersas riachos previsíveis
A rapariga retrocede
e com ela tudo o que da vida
me mantinha vital efervescente
capaz de esquecer
esquecendo mesmo que esqueci
ver sem interpretar o que vi
dom de solidão sim ao sim
pessoas-out
Ouvir o chamamento do que ela chamou
vem quis ir
correr desesperadamente ir
ir outra vez e descobrir-lhe
a face que a madeixa escondia
Confesso que quis ir
mas tudo era antecipação
ela retrocedia
e eu que me via correr
desesperadamente ir
Ou então num gesto largo
agarrar a paisagem com mulher
e guardar isso nos bolsos
e mostrar a toda a gente
olhem querem ver a morte
Era isso ter o quase o que escapa
Olhar de um apeadeiro-lugar
e observar criteriosamente
a linha do comboio bizarra
e ao fundo a paisagem com mulher
e enquanto eu ser outro
dizer sim ao chamamento
do que ela chamou vem
com aquele sorriso que disse ser estranho
como tudo o que é vida desejo movimento
Porque a paisagem ao fundo
a quietude de tudo
o querer ser aquilo para sempre
lembrou-me a morte
                                            o que escondia
a mulher com paisagem ao fundo


(Fernando Martinho Guimarães)


voltar última atualização: 31/03/2006
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