A Garganta da Serpente

Fernando Martinho Guimarães

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Vai a noite na correnteza do comboio
algures para Lisboa já tarde
Dura na intermitência
o querer ir onde nunca estou
Meninas sentadas num banco
que me parece ao longe
cantam e soletram poesia
para carpir a duração
futuro longo e profecias translúcidas
viajam comigo par aonde não vou
Aborrece-me a inquietação
que não tenho e finjo-me
d'aquilo que não sou
Setúbal peninsular vista do sul
de onde elas vêem
Não me perco em congeminações
do que lhes foi no sul que foi
nem antecipo o que vem
na Lisboa dorida que vem
Passa o cais em marcha-atrás
na quietude da baía
Contentores máquinas e gruas
esquecem-me das meninas
e aborreço-me sem bocejar
Nem as janelas iluminadas
por scaners de filmes regulares
alteram a minha desatenção
Fumo um cigarro que descai desmaiado
na unha queima-me a insensibilidade dos dedos
na gravidade de um corpo quase fatal
Eis: esvoaçam trémulas as cegonhas em Alcácer
e o rio mira-se num espelho quebrado
O tempo pára suspenso
e o esboço de mim trejeita sem jeito
Alma Anima Alento
Repito os gestos do quotidiano
Tomba sórdida a noite
e a inquietude vem
Descansa quedo o cigarro
nos dedos à deriva
o fumo enovela e esqueço-me
Abate-se o dia numa fosforescência parda

Todos os dias são um dia
                                                            sem dano
já é noite e a noite tarda


(Fernando Martinho Guimarães)


voltar última atualização: 31/03/2006
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