A Garganta da Serpente

Geraldo Ramiere

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O DEVORADOR DE FLORES

Mais uma vez desperto tórpido e trêmulo
E cambaleante vagueio nu pelo deserto de homens
Novamente com corpo e alma talhados
Pelas mesmas navalhas que escondia em minhas mãos
Maleadas por meus medos mais sinceros
E o sangue que escorre pelos cortes abertos
São lágrimas que secaram antes que eu pudesse chorar

Andarilho por entre a névoa, neurastênico e nauseado
Caminhando descalço sobre cacos de vidro
- Restos cárneos do que julguei eterno -
Olfateando a luz obscura do dia noturno
E não cessa o gotejante fluir de sangue por minha pele
Continuo em lentos passos, procurando curativo em braços alheios
Mas ninguém percebe que tenho cortes, e que sangram
Nem que desfaleço em movimentos árduos
Todos me acenam, todos sorriem para mim
Peço ajuda, digo que morro, mas apenas sorriem para mim
Insisto, mostro minhas marcas, mas ninguém as vê
Gesticulo, exalto-me, respingo sangue na multidão
Agarro alguém, ensopo-lhe, mas não percebe que sangro
Viro o rosto, e noto um longo lastro vermelho atrás das minhas costas
Seguindo a linha traçada por todos meus passos
O outro me fita, mas só me pergunta: como vai você?
Então grito, repetidas vezes, até sentir minha garganta também sangrar
Mas todos apenas sorriem para mim, apenas sorriem...
Como vai você? Como vai você? Como vai você? Como vai...
Corri, berrei, fugi, defendendo-me do dardejo de sorrisos
Todo rosto é uma máscara, e os rostos eram todos iguais
E no lugar de afagos, havia apenas o compartilhar de lâminas veníferas.

O belo enferrujou por ter sido nulo
A dor congelou-se por causa do frio
A esperança é Argos sem olhos
A verdade Narciso iludido
E a mágoa já não é mais mágoa
Por ter metarmofoseado em algo desconhecido
Tingi o sol de escarlate quando tentei tocá-lo
O céu está tão baixo que piso sobre serafins entorpecidos
Que delirantemente embriagam-se com absinto
Bebo um pouco de cicuta pra vê se esqueço o desperdício
Um fantasma antigo me oferece cigarros
Mas o fogo foi tão fátuo que apagou antes do desatino
A mentira é pão de cada dia que já não tenho hoje
Todos os anjos estão decaídos, não sei explicar o que sinto
Ontem e agora, todo caminho é labirinto
E o que era tristeza já não tem mais nome

Meu coração túrgido está pesado demais
Então o arranco, oferecendo-lhe para o primeiro vulto.
Mas sombras não conseguem segurar o que é corpóreo
E ele cai no chão de zinco, quebrando-se em mil pedaços
Por temer os estilhaços, tenho ímpeto em cobrir meu rosto
Mas com susto, percebo que já não tenho olhos
Nem mãos, braços, pernas, tronco ou cabeça
Tento gritar, mas também já não tenho voz
E, em queda, perco-me no abismo do meu desespero mudo
No momento, sou apenas silêncio
Sendo todos, e não sendo ninguém

Cada corte meu é um pássaro que falece lentamente
E a minha última gota de sangue exauriu antes da única lágrima
Haurindo em forma de esquecimento
E na escuridão, torno-me apenas sombra
Lamentando-me sobre o túmulo do derradeiro afago
Tão espectral como a remanescente palavra de amor
Que jaz na garganta de um poeta decrépito
E todos os dias caíram como frutos de uma árvore morta
Sinto-me sozinho, perdido pelo desfiladeiro de mim mesmo

Mas de repente alguém me tocou
Não me disse nada, apenas abrigou-me em seus braços
Então chorei, calmamente, sentindo meu corpo outra vez
E quando abri meus olhos, apenas vi o rumor de uma luz vaga
Percebendo que abraçava apenas eu próprio
E todos os meus cortes foram fechados
E sai contente, voando com minhas asas retomadas
Mas notei que elas estavam manchadas de sangue

(Geraldo Ramiere)


voltar última atualização: 23/04/2004
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