A Garganta da Serpente

Gustavo Lisboa

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LÍNGUA MINGUANTE

1
Entre a minha língua e a tua
existem palavras à míngua.
Nossa boca vestida de dentes;
nossa língua de sonhos despida.
Entre a minha fala e a tua
existe um verbo que não se cala.
Entre o ser vivo das gentes
existe mais que um adjetivo;
entre o ser posto das coisas
existe mais que um aposto.
Entre a minha voz e a tua
existem frases a serem ditas.
O silêncio prende, se amua;
transforma o ser em coisa aflita.

2
Aqui está um poema solitário,
escrito incólume nessa face
desvelada de papel e espaço;
apenas mais um ser de cenário.
Mais um poema vulgar e real,
trazendo vivo como se revelasse
uma tarefa num único abraço,
como se moldasse o bem no mal.
Ignorado de sua própria criação,
o poema não veio para decifrar
o leitor hipotético de vagar;
o poema acontece em danação,
voraz construtor de fantasias,
destroços verbais de maresias.

3
O poema jaz subterrâneo no poeta;
dele é parte fulgurante e escura.
O criador não sabe que ele é meta
da criação, assim repleta de pura
fábula ou sonho ou mito ou verdade.
O poema se compraz em atordoá-lo,
torcê-lo em seu pescoço frouxo,
tirar o equilíbrio de seu pé coxo,
atirar sua alma no resvão do calo,
fazer dessa escritura uma vaidade.
O poema é escravo e rei soberano.
Mal sabe o poeta dessas maldades
do que o poema é capaz, no plano
ardiloso de se esconder nas idades.

4
Entre o meu poema e o dele
existe apenas uma intenção
de um pacto forjado no chão,
feito de palavras e peles.
Entre o meu poema e o nosso
não medeia mais que um nada,
só o vento mexendo os ossos
de uma sepultura arruinada.
O meu poema é melhor que o ar,
o dele é mais que uma beleza;
eu caio na armadilha do sonhar,
ele permanece sobre a mesa.
Apago a luz e esqueço quem era,
e ele fica recolhido em espera.


(Gustavo Lisboa)


voltar última atualização: 10/10/2003
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