A Garganta da Serpente

João Cony

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A vila

Um olho furado à bala.
Bala que não atingiu o cérebro.
Dois outros corpos morreram.
A vila, em sua essência marginal, líquida, fluindo.
Os restos não mortais no espetáculo trazendo a notícia - olho no olho, sem chance -
não passam de pensamentos repletos de medo.
Rotina: serei eu o próximo?
Aqui na cidade me faço escândalo na alma enquanto outras almas,
na inocência de uma travessia embarrada, deixam seus corpos.
O meu, não.
A minha alma, sim, essa se faz despedida.
Preso na vila, dou a ré no carro com medo do medo que eu não tenho.
Meu caso a parte, sei que, nesse exato momento, outros enfrentam seu movimento
com os braços esticados: seis balas na agulha que não treme.
Não tem erro: alguém, mesmo que inocente, tem de morrer.
Não podem deixar o respeito desvalorizar-se.
São os reis do esgoto a céu aberto,
de famílias que criam os filhos pro mundo de crianças mascaradas
exibindo suas armas em riste em pleno dia.
Resvalo, chegando ao rumo da morena.
Não olho para os lados mais de uma vez, pois não sou daqui, não tenho voz.
Sou do centro, mas dobro à esquerda.
Estou chegando sem nada ter feito.
O dia sem dia.
Sua mão consola as minhas que envolvem-na, mesmo tremendo.
Uma noite de vários dias na cadência.
O amor e a morte tão próximos.
Como desfazer a ambigüidade do sonho?
Pego minhas drogas e me escondo.
Insaciável, repito o erro.
Môo a dor do mundo e exacerbo em canções.
O que sobrou, eu cuspo.
Outro dia vou morrer e nada deixarei sobrar.
Peguem tudo e joguem no fogo!
Vou sorrir antes de penetrar, outra vez, nesse lugar de ninguém.
O toque a deixa inválida: outra vítima para meu coração se preocupar.
Vem aqui no cantinho: eu vou te estuprar!
Esperma em tuas pernas...
Gozo e vou me entregar à doença que mata meninas de treze anos.
Meto-me na troca de tiros.
A polícia me mata e eu grito do outro lado: obrigado!
Não agüentava mais tanta dor, empatia e falso heroísmo.


(João Cony)


voltar última atualização: 17/07/2009
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