A Garganta da Serpente

José dos Passos

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Quatro Sonetos

 

 

I

Nos braços da saudade sou português,
Libertino, romântico e vadio,
Descendo de Bocage e desafio
Luzes e sombras, uma de cada vez.

Canto naturalmente quem me fez,
Quem me diz, quem me sente, neste rio
Que fala sem cessar em desvario
De caravelas, cruzes e mercês.

Processo texto em vão, com desamor,
E pressinto na tela a nostalgia
Dum soneto suave de Quinhentos.

Não professo nenhuma fé nem dor
De cotovelo, corno ou maresia.
Vivo e morro apenas por momentos.

 

 

II

Não quero ser gongórico nem faço
Tenção de ser alguém ou outro por mim:
Algures, no princípio ou no fim,
Hei-de sentir o súbito fracasso.

Mas os pássaros cantam nesse espaço
Entre a espada e a parede, o não e o sim,
O vermelho e o verde, o ébano e o marfim,
A vida e a morte, a ilusão e o cansaço.

E, como cantam, parto satisfeito,
De azul e amarelo, de negro e branco,
Versejando e batendo a mão no peito.

E no caminho vejo com desgosto
A chuva que falece no rosto franco
Do soldado tombado no seu posto.

 

 

III

Sou ledo como um campo cultivado,
Uma janela aberta, um canto nono,
Um gato novo, um vinhedo no Outono,
Uma nave no céu, um país libertado.

Sou triste como um deus abandonado,
Uma porta sem fecho, um cão sem dono,
Uma chave perdida, uma noite sem sono,
Uma carta sem selo, um relógio parado.

Composto de contrários, vou andando,
Umas vezes subindo, outras descendo,
Agora, sempre e nunca, ao desmando.

Composto de mudança, vou sabendo,
Umas vezes sorrindo, outras chorando,
Que, de maneira certa, vou morrendo.

 

 

IV

Sei de terras distantes e dolentes,
De lugares serenos e formosos,
De sítios controversos e famosos,
De pontos de chegada diferentes.

Sei de noites cantantes e contentes,
De dias sossegados e sedosos,
De momentos amenos numerosos,
De pontos de partida sorridentes.

Sei de nomes e rostos que conheço,
E daqueles, também, que desconheço,
E que tudo tem fim no seu começo.

Sei que nada se sabe, nada sei,
Nada fui, nada sou, nada serei,
Do nada vim, em nada me farei.


(José dos Passos)


voltar última atualização: 02/05/2005
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