A Garganta da Serpente

Kátia Drummond

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RASTROS

[A Charles Baudelaire. Em memória.]

Eu sou devota das palavras sãs.
Tenho a missão de transformar o mundo.
De desmistificar as causas vãs.
De dialetizar as calmarias.
De destoar dos dogmas, das leis.
De discordar e de romper de vez.
Carrego um lado torto, outro corcunda.
Depende das pedreiras do caminho.
Das foices, dos martelos, das enxadas.
De tudo o que discordo e desalinho.

Num corpo embaraçado em finas teias,
Trago uma alma que pensa e que delira.
Força inquieta, imprevista, insana.
Mas delicada, como o som da lira.
Um coração ardente, sempre em chama.
O sangue que percorre as minhas veias,
Aos meus sentidos, vai virando cobras
Que serpenteiam, tortuosamente,
Tal qual um rio fecundo em solo quente.
Como um pincel traçando novas obras.

As minhas mãos singelas, palmo a palmo,
Escavam firmemente a terra bruta.
Enquanto os meus pés, a cada passo,
Cravam no barro o sangue desta luta.
Eu tenho por tarefa, ser tenaz.
Eu tenho por medida, ser ligeira.
Meu tempo urge. Não olho pra trás.
Se a vida é uma aventura passageira,
Por que chorar, se o passado não volta,
E se a morte é a flecha mais certeira?

O meu espelho nunca me reflete.
Mostra as doçuras e as brutalidades
De um mundo atroz, traçado a canivete.
Mostra as dores dos filhos de Zimbabwe,
Suazilândia, Lesoto, Botswana.
O mundo que maltrata e que engana.
Que cria a infância e que lhes rouba a alma.
Que trai e corta fundo, com a navalha,
A mãe que, em vão, o filho morto aclama,
Ao tempo em que lhe serve de mortalha.

Tenho uma cara que pensa e que constrói.
E outra que destrói, face aos perigos.
Se brinco, sou a taça do herói.
Se penso, sou a arma dos bandidos.
Sou as meninas, as putas das ruas.
Os corações humanos travestidos.
Os pivetes com armas de brinquedo.
Os favelados sem o samba-enredo.
Os mortos-vivos, trastes desnutridos.
Os cadáveres das guerras invisíveis.
Os Budas tibetanos destruídos.

Sou o "teatrofantasma" de Ariel.
De Janis Joplin, a voz rouca e fiel.
De Allen Ginsberg, o verso destroçado.
De Theo Dorgan, o amor estilhaçado.
De Brecht, eu sou o derradeiro ato.
O último suspiro de Torquato.
De Casusa, eu sou o desatino.
Sou nau perdida. Nave sem destino.
O lancinante grito não contido.
O diabólico ecoar do sino.
Eu nada quero e tudo tenho tido.

De noite, exausta, deito-me e descanso.
Adormecida, sonho que estou viva.
Na madrugada, eu acordo e avanço.
Acorrentada, escrava, ave cativa.
De dia, ao despertar, ouso e alcanço.
Desato os nós, desembaraço a teia.
A liberdade abre as suas asas,
E o universo inteiro me encandeia.
Bandeiras rasgam-se nos velhos mastros.
E enquanto o sol acende a terra em brasas,
Eu sigo em frente... deixando meus rastros.

(Sintra, Portugal)


(Kátia Drummond)


voltar última atualização: 30/12/2009
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