A Garganta da Serpente

Lenin Bicudo Bárbara

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Verdade e verso

Não se nasce poeta, nem resiste
A poesia aos murros da Verdade,
Que a poesia é, tão-somente, a triste
Emanação fugaz de uma vaidade...

Não se nasce poeta, porque a vida
Cuida trazer pra nós muitos presentes,
E o verso só nos dá fria acolhida,
O verso só nos deixa descontentes;

Enquanto a vida, no seu vai-e-vem,
Na sua inconseqüente e vã folia,
Se ora nos traz tristeza, traz também,
Dentro em breve, os favores da alegria...

Ninguém nasce poeta, só se torna,
Como se torna alcoólatra quem bebe:
Uma rima, antes fria, desce morna
Na garganta vermelha que a concebe...

Pois sim, a poesia é como um vício
E o poeta, um amante da ressaca,
Que procura no verso um benefício
Com que curar a sua mente fraca.

É um covarde que escolhe a covardia,
Que se recolhe aos íntimos relatos,
E lá descreve a sua fantasia
Doida, distante do mundo dos fatos...

Ninguém nasce poeta, só se morre!
Ninguém quer ser poeta, só se quer
Tomar dos versos o vinho que escorre
Como escorresse em lábios de mulher...

Os versos, na verdade, são grilhões
Em que a paixão se encontra acorrentada,
E quem os faz é o mártir das paixões -
A alma mais triste e a mais desconsolada!...

Pois o poeta sabe - e o sabe apenas! -
Amar a solidão do próprio estilo,
Onde pode curtir suas Helenas
Sem que elas lhe perturbem o cochilo!

E se o poeta está preso aos estilos -
A vida voa, livre em seu vagar...
É que os poemas não são mais que asilos
Onde os sonhos caducos vão parar!

E é preciso admitir que a poesia
Jamais abrigará na sua ermida
Nem sequer a Verdade mais vadia
Que pela Eternidade foi colhida...

Pois a Verdade é imensa e indefinível,
E, além do mais, se entranha lá no fundo
Da essência de tudo o que há de sensível
Nas várias aparências deste mundo;

Enquanto a poesia é, justamente,
Um recorte embaçado do que vemos,
Uma expansão daquilo que se sente -
Um vislumbre do que mal percebemos...

E é, portanto, somente a tentativa
Sempre frustrada, sempre inacabada,
De se espremer de uma matéria viva
A forma em que ela estava mascarada...

Mas o que cabe, então, no vão de um verso?
O que ali poderia, enfim, caber?
Cabem os estilhaços do Universo
Que habitam no recôndito de um Ser!

Cabem as tramas tolas e sutis,
Os enredos do engenho criativo
Das mentes desse espírito infeliz
Que assombra a consciência de um ser vivo!

E cabem as vaidades e os caprichos,
As ledas ilusões de algum impulso.
Cabe o grito do instinto que há nos bichos
E o desordenado ritmo de um pulso...

E cabem as mentiras de um amante,
Doidas idéias de algum vagabundo...
Cabe tudo o que, enfim, dure um instante,
E que, a seguir, se perca pelo mundo!

Cabe a esperança, que um dia se finda.
Cabe a visão de quem furou os olhos.
Cabe a ilusão de uma donzela linda,
Cuja cabeça é cheia de piolhos!

E cabe, além de tudo - e mais que tudo! -
A vaidade ferida de um poeta
Que, por amar quem não lhe quer, vai mudo
E sozinho seguir do verso a seta!

Só não cabe um amor que seja pleno,
Porque se é pleno, então é de Verdade,
E na seta do verso há só veneno:
Um verso não suporta a realidade!

Num verso, nada cabe de sincero.
Numa rima, nada há pra se entender.
A poesia é um erro que eu não quero,
Mas que insisto, que insisto em cometer!

Eu não nasci - nem era o meu destino! -
Pra me tornar o que deveras sou:
Poeta não, mas sim um peregrino
Que, por azar, nos versos tropeçou;

Que pode, até, seguir outro caminho,
Mas que o não seguirá mui certamente:
Já vai acostumado a estar sozinho
Sob a tenda de algum verso eloqüente...

Não se nasce poeta, nem existe
Poema algum em que caiba a Verdade,
Já que um poema é, tão-somente, a triste
Emanação fugaz de uma vaidade!...


(Lenin Bicudo Bárbara)


voltar última atualização: 21/10/2006
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