A Garganta da Serpente

Macabeu Samsa

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Eu queria ser teu quarto, a mobília do teu quarto.

Eu queria ser teu quarto,
a mobília do teu quarto,
a lâmpada vermelha,
azul, a branca;
a furta-cor…
"A luz negra com seu destino cruel"…
o sol,
a lua: lebre lunática
babando por ti.

Eu queria ser o teu redor,
tua decoração subjetiva, tua paisagem interior,
tua sensação de estar no mundo,
quase ausente:
a tua alma vazando pelos poros
(abundante pelo que o corpo sabe de ser corpo,
rarefeito em contraponto,
como a forma da certeza que se esvai a cada instante)

Queria ser o frêmito de leite quando somos um;
cada grama de tristeza tua.
A melodia pluvial das tuas lágrimas,
teu riso de felicidade clandestina,
a convergência lenta entre
o teu primeiro e o teu último suspiro,
tuas vertigens centrífugas
de se saber suspensa na aridez do universo,
e de levar às mechas
das gardênias o perfume branco.
De carregar na dor
o que dói,
de esfarrapar o véu das corriqueiridades
e escancarar o pasmo,
e o sumo do inefável lhe saltar ao rosto
e te melar os lábios a substância que te a ateia fogo ao peito.

Queria ser tua carne,
e dela a porção que ama,
e desta ser o afã de dentro.
Queria ser teu centro.

Queria ser o perfume do teu berço;
que é a nostalgia de antes do teu berço
-quando nem havia Fernanda
e o sol não fulminava ao fitar dos teus olhos
(o sol ainda não era um sonho teu)-
a primeira cor que te queimaste a vista,
a coincidência de tempo-espaço em que habitas.

Queria ser Dramim, Ponstan e Minesse,
queria ser Trindade, Minas, Terra,
a chuva a te chorar nos ombros,
o vento a te insultar a inércia,
a noite a te cobrir de insônia,
o tempo. E sendo o tempo
me demoraria eterno
na delícia de um milésimo
do mais doce instante de deleite de brinquedo teu,
e seria teu escravo retardando as horas ao teu prazer.

Queria ser tua fome de chocolates,
a exaltação do ânimo e a falta dele.
Tua inconstância de quem sabe
que navega lépida na imprecisão
e que tem como único destino
a vastidão da morte.
Queria ser a morte e queria ser o medo que tens dela.
Mas a morte…

A nós os ardentes,
esta morte antes une que separa.
Como quando a viúva já tão velha e solitária
faz da falta do seu homem uma capa:
ela agora são eles
eles os amantes:
O luto
é o amálgama das almas
na serenidade opaca.

E eu…
eu que agora amo-te
neste exato sempre;
quando agora digo e sei
do amor
um tanto a mais contigo;
quando aqui existo
para que me salvasse antes;
tenho que enquanto amo-te penso que sou tu.
Sei que sou um mundo sendo humano,
e amo-te como se não fosse…
E sei que somos tudo
nós e o mundo louco;
nós e os homens tolos;
nós e os corações que sangram…
E na primavera que conspira
conosco neste ermo nada de concreto e lixo,
nós floresceremos
e seremos uma linda manhã
de sonho morno
e leite.

E quando humanos e cansados
nos reconhecermos como águas que convergem
e num instante se abrandam em uma mesma calma oceânica,
saberemos mais do amor sem as palavras (essas ingratas
que relutam em nos revelar de tudo a menor porção de plenitude).
Humanos ainda,
vamos
vislumbrar o suposto;
executar o insinuado;
iluminar o absurdo calvário de dor e surpresa
que é a vida quando se nos permite vê-la nua.
E seremos tudo o que em nós se manifesta,
como nos aforismos de Caeiro:
com o brilho natural das coisas apenas presentes e sem as voz
que lhes atribuímos.

Sem os nomes para nos trairmos com a mentira de sermos nós (inevitável e
irremediavelmente nós),
nos chamaremos em silêncio…

e o silêncio vai se fazer canção
de musgo e ameixa madura ferida no susto do palato;
nossos olhos vão lamber as horas
de dentro para fora
e será o nosso beijo na boca da vastidão serena,
quando enfim nos poderemos dizer (emudecidas nossas carnes)
quão imenso é viver e nem sabemos!
E num sorriso sem dentes,
saberemos.

(Macabeu Samsa)


voltar última atualização: 17/08/2009
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