A Garganta da Serpente

MarisaW<

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PASSADO A LIMPO

Não, nada nenhum foi esquecido
do que li no livro do teu rosto,
O silencio breve ali exposto
entre as letras tortas da expressão,
foi o desenganado pedido
- imprevisto jorro de andorinhas -
que se esfiapou nas entrelinhas
e se desfez, sem explicação.

Não, nem pude esquecer da manhã
em que as naus se fizeram ao mar ;
do berro insano da cortesã,
errando na praia a acenar
às velas brancas que se afastaram.
Nem das estrelas que despencaram
como dardos duros, e fincaram
pesadas grades em meu olhar.

Nem do mergulho que se seguiu,
em águas profundas, abissais,
da descida aos meus dias iguais,
onde cada olhar foi doloroso
e a cada peça que me despiu ;
foi o aço frio que retalhou
a minha nudez e a transformou
num grito louco e silencioso.

Tampouco do abrir das cicatrizes
inscritas nas entranhas, na pele ;
as marcas no tronco, nas raízes,
dores que hoje a memória repele
e delas faz um hausto de ar vital
a quem, da sua morte abissal,
sente vir como força primal
no murro que à vida o impele.

Só quando a página foi virada,
e que a tarde abriu as suas portas,
do lento escorrer das horas mortas,
qual desesperada procissão,
a dor da lembrança, tatuada
no manuscrito de cada dia,
fez-se inventário da agonia
de todas as mortes da ilusão.

Quando é que apodrece um fruto,
existirá um momento exato ?
o último dia de um contrato,
o ponto final em uma carta ?
haverá um morrer absoluto,
feito lei que se abole e outra faz-se,
ou será que a borboleta nasce
da morte gradual da lagarta ?

No livro, que colei aos pedaços,
hoje leio a história que sobrou
dos dias onde deixei meus passos,
erros que nem o Tempo explicou.
Dos verdes anos que foram nossos
restam folhas secas, sem caroços,
pois a dor, remoída nos ossos,
essa, dentro dos ossos ficou.


(MarisaW)


voltar última atualização: 23/09/2005
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