Tem dias em que nos sentimos diferentes, dias em que parecem que cem rios ou
talvez um só te afogam (inundam) o coração. Nesses dias,
as palavras não possuem esse brilho resplandecente que as tornam belas;
a garganta torna-se um útero estéril e não germina nem
o mais ínfimo murmúrio ou gemido, é como se fosse que estamos
secos, já não é sangue o que corre pelas veias, são
gotículas de raiva coagulada que se movimentam muito lentamente.
Coaxar, como os sapos afogados de barro. Respirar pelos cabelos, já que
o ar é mais denso que o piche. Ou são gloriosos esses dias, ou
é a morte propriamente nua pendurada nas nossas costas querendo ser carregada
até o seu leito.
Mas estes dias, não são raros como a casca do ovo chocado do qual
emergiram os planetas, são únicos em sua espécie. São
como corvos perdidos do seu bando que voam desatinados à procura de uma
cabeça para montar o ninho. Já tenho na cabeça, três
ovos e dois filhotes que picoteam-me o couro cabeludo e comem os meus piolhos
para assim voar a outra cabeça.
Normalmente, nestes dias, tenho vontade de trocar o couro como troco de roupa.
As recordações tornam-se carrascos, verdugos, maltratam-nos ternamente,
duplicando-se como baratas noturnas e roedores, que invadem os últimos
rincões do meu ser. As vejo passar. As retenho. Me consomem. Fazem-se
pesados e as pernas tremem, entrechocando-se os joelhos e os calcanhares. Às
vezes, cuspo um pouco de espuma e sangue, acho que assim me purifico. Procuro
o mofo dos sorrisos dos meus amigos, que costumam guardar se não é
a morte são os urubus, detrás dos dentes felinos, com esse odor
que se lhes escapam através dos poros da pele. Que seria um amigo se
não é ele quem te crava o punhal quando lhe das as costas? Dor?
Já não sinto dor. Sinto o cheiro das amizades podres que plantaram
as sementes negras do Leste. Já tenho o peito cheio de buracos porque
nas costas já não tem lugar para os gládios.
Não sangram as feridas, não derramo sangue por perfídias,
inúteis do caralho que não sabem nada do amor e do ódio,
da dor e do prazer, da busca da luz verde que ilumina entranhas, crânios,
reprimidos e mendigos, e tudo o que uma alma sedenta busca para saciar-se.
(Moilec Vailea)
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