A Garganta da Serpente

Nivaldo Lemos

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AUTOCONTEMPLAÇÃO

Fruta que se desintegra,
tem tudo de poema:
pequenos pêlos, inúmeros cheiros
e uma noite muda
em muda decomposição.
Fruta-bicho desarquitetando a vida
silenciosa dilaceração
saliva, susto, sublimação.

Será de bicho ou fruta esse cadáver em solidão?

É tanta melancolia em seu corpo,
tanta ausência em seus odores,
que me confundo no espelho.
Em vez de fruta é a mim que vejo:
catedral vazia de amores,
turva simetria do desejo,
sem rastro, sem porta ou fecho.
Ela e eu apodrecemos no soneto,
fruta-abcesso, bicho-obsessão:
loucas rimas da mesma solidão.

Bicho da noite/mulher,
fada/fruta deflorada.
Que tempo te transfigura?
Que mecanismo te empurra?
Será o avesso do cheiro,
ou apenas tua doçura?

Ah, fruta-favo da aurora,
me comove a tua lugubridade,
o teu adeus sem nome ou saudade.
Há luz? Há escuridão?
Apenas pânico à exaustão,
morna solidão cutânea
mordendo-me sonâmbula de paixão.
Sangue obstinado no poema,
de bicho, fruta, homem
corpo, sono, tesão.


(Nivaldo Lemos)


voltar última atualização: 24/08/2002
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