A Garganta da Serpente

Pedro Malta

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O fim da marcha

I.
A criança prodígio voltou e a aldeia à qual ele havia virado costas não acolhe com rancor. Pelo contrário! Os anciães, os antigos companheiros, todos os actores da sua infância recebem-no nos braços quentes de uma lareira crepitante e na segurança de uma manta maternal, enquanto recordam o esplendor dos dias passados.
Mas a criança já não o é. As histórias contadas na névoa dos cigarros da nostalgia perderam o seu poder embriagante, agora reina o marasmo que vai se alimentando das vidas bloqueadas…

E o prodígio, angustiado com a tépida decadência do fogo inerte do passado, essa chama gasta pela usura; sufocado pelo pó e mofo de toda aquela sala, abandona novamente os irmãos, os pais e toda a comitiva saudosista para se esconder no cabo das suas memórias, no farol onde tudo se separa: o tempo, as sensações, a legião…

Ele pega na bicicleta e veloz e embalado, sente o calor que se desfaz e a manta que caí em farrapos no chão.

II.
"Ah! A beleza e vida do vento gélido e cinematográfico que uiva nestes dias de sol invernal"

III.
E de repente a bicicleta abranda…
Ponho o cachecol, está frio porque o vento não pára…
Voltei à avenida da minha infância
Onde um espelho liquido na praia do Rio
E a maresia se confunde com o cheiro a alfazema...
E no fim do caminho o farol

Ah! Amigo… lembras-te da sonoridade das palavras atiradas ao vento?
Da marcha que nos conduzia até ao farol?
Eram tantas as palavras e éramos um
Eram tantas e tão juvenis que cobriam o nosso caminho
Como é possível amigo
Que esse caminho nos tenha esgotado as palavras
Que o frio, os cânticos, a praia tenham sido destronados pela modorra de uma lareira e pela angustia de uma sala dormente?

Calculo que tenhamos chegado ao farol…
Sim… Porque no tempo em que os gracejos e discussões vigoravam tudo o que nos rodeava: a praia, o mar, a lua, o vento, as lâmpadas, a alfazema eram as bandeiras e estandartes que justificavam a nossa marcha.
E nós caminhávamos pela avenida com a mesma ideia, embriagados pelos mesmos sonhos. Seguros e completos como numa legião…
E a nossa infantilidade e fascínio pelas mais simples coisas eram o compasso que nos orientava.

Mas a grande marcha agora chega ao fim.
Uns abandonaram-na antes da chegada
Outros deixaram os seus passos decididos e impetuosos
Passando a deambular pelo seu tédio
Mas agora a marcha chega ao fim
O mar deixa de ser calmo e luminoso
E cede lugar a um abismo
Onde as ondas negras quebram em estrondo na areia invisível!
Uma única tocha existe e aponta para o infinito.

E aqui a legião desfaz-se
A alfazema tranca-se nos escombros da minha memória
E as palavras são escassas demais para compor uma melodia
E as palavras não têm valor quando são atiradas ao ar.
Porque elas perdem-se no abismo de cada um de nós
Porque o infinito é grande demais para ser partilhado.

Aqui o silêncio é mais forte que a marcha
Embora ele não ilumine o ar e o mar como quando éramos um
Deixa-nos tão sós no nosso sonho
Que vejo tudo o que quero e não existe no mar impenetrável
Agora a legião sou eu apenas

E em glória pessoal dou o primeiro passo para além do farol.


(Pedro Malta)


voltar última atualização: 01/03/2008
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