O fim da marcha
I.
A criança prodígio voltou e a aldeia à qual ele havia virado
costas não acolhe com rancor. Pelo contrário! Os anciães,
os antigos companheiros, todos os actores da sua infância recebem-no nos
braços quentes de uma lareira crepitante e na segurança de uma
manta maternal, enquanto recordam o esplendor dos dias passados.
Mas a criança já não o é. As histórias contadas
na névoa dos cigarros da nostalgia perderam o seu poder embriagante,
agora reina o marasmo que vai se alimentando das vidas bloqueadas
E o prodígio, angustiado com a tépida decadência do fogo
inerte do passado, essa chama gasta pela usura; sufocado pelo pó e mofo
de toda aquela sala, abandona novamente os irmãos, os pais e toda a comitiva
saudosista para se esconder no cabo das suas memórias, no farol onde
tudo se separa: o tempo, as sensações, a legião
Ele pega na bicicleta e veloz e embalado, sente o calor que se desfaz e a manta
que caí em farrapos no chão.
II.
"Ah! A beleza e vida do vento gélido e cinematográfico que
uiva nestes dias de sol invernal"
III.
E de repente a bicicleta abranda
Ponho o cachecol, está frio porque o vento não pára
Voltei à avenida da minha infância
Onde um espelho liquido na praia do Rio
E a maresia se confunde com o cheiro a alfazema...
E no fim do caminho o farol
Ah! Amigo
lembras-te da sonoridade das palavras atiradas ao vento?
Da marcha que nos conduzia até ao farol?
Eram tantas as palavras e éramos um
Eram tantas e tão juvenis que cobriam o nosso caminho
Como é possível amigo
Que esse caminho nos tenha esgotado as palavras
Que o frio, os cânticos, a praia tenham sido destronados pela modorra
de uma lareira e pela angustia de uma sala dormente?
Calculo que tenhamos chegado ao farol
Sim
Porque no tempo em que os gracejos e discussões vigoravam tudo
o que nos rodeava: a praia, o mar, a lua, o vento, as lâmpadas, a alfazema
eram as bandeiras e estandartes que justificavam a nossa marcha.
E nós caminhávamos pela avenida com a mesma ideia, embriagados
pelos mesmos sonhos. Seguros e completos como numa legião
E a nossa infantilidade e fascínio pelas mais simples coisas eram o compasso
que nos orientava.
Mas a grande marcha agora chega ao fim.
Uns abandonaram-na antes da chegada
Outros deixaram os seus passos decididos e impetuosos
Passando a deambular pelo seu tédio
Mas agora a marcha chega ao fim
O mar deixa de ser calmo e luminoso
E cede lugar a um abismo
Onde as ondas negras quebram em estrondo na areia invisível!
Uma única tocha existe e aponta para o infinito.
E aqui a legião desfaz-se
A alfazema tranca-se nos escombros da minha memória
E as palavras são escassas demais para compor uma melodia
E as palavras não têm valor quando são atiradas ao ar.
Porque elas perdem-se no abismo de cada um de nós
Porque o infinito é grande demais para ser partilhado.
Aqui o silêncio é mais forte que a marcha
Embora ele não ilumine o ar e o mar como quando éramos um
Deixa-nos tão sós no nosso sonho
Que vejo tudo o que quero e não existe no mar impenetrável
Agora a legião sou eu apenas
E em glória pessoal dou o primeiro passo para além do farol.
(Pedro Malta)
|