A Garganta da Serpente

Pedro Malta

  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Na autoestrada de Cascais

Quero sempre o que vem depois
Tento matar o que há dentro de mim para me libertar
A minha única satisfação é viajar de carro perigosamente
A 230 kilometros hora.

Não digo uma palavra
As palavras são sacrilégios artificiais quando nos encontramos perante uma parada
Quieto, no banco de trás, sinto a velocidade e a orquestra do motor
Acompanhada pelos sons imediatos que rasgam a noite:
O ladrar histérico de uma ambulância
O roçar quase suicida do automóvel com uma barreira de metal
O uivo estridente de uma mota
Tudo é música que me acaricia e morde o corpo
Da janela assisto ao espectáculo do exterior
Como se assistisse à inauguração de um mundo transformado:
Serpentinas de luz que se desfasem no escuro
Todo um caos trágico de imagens desfocadas
Com os contornos difusos e as cores borradas
(a árvore preta inclinada pela celeridade)

E o mundo é música e luz e eu sou um grito de raiva e abdicação para dentro
Como é bela a violência da minha vida que depende apenas da sorte e da experiência de um condutor tão entediado e drogado como eu!
Como é belo o ditirambo histérico entoado pelos outros passageiros
Que como eu vêm a velocidade a correr pelas suas veias
E esquecem a morte, essa realidade assassinada pelo conta-kilometros.
Porque naquele espaço de tempo sou um Deus
Dionisos que conduz a carruagem de fogo de Apolo!
Trazendo a vida e a morte pelos céus.
E eu só quero o limite:
240…250…o humanamente impossível!

Mas o som rouco de um tunning que nos ultrapassa desperta-me, faz-me perceber que há sempre alguém mais divino que eu e rende-me à evidência
"E se eu morrer?"
Esta frase surge e destrói o pequeno Deus que residia em mim…
Não sei se respondi a essa pergunta
Com medo e desejo de sobrevivência
Ou com um sincero sentimento de indiferença…
Seria realmente trágica a morte no pico da satisfação?
Ou apenas serena como o deitar na relva no fim de uma tarde amena?


(Pedro Malta)


voltar última atualização: 01/03/2008
7521 visitas desde 01/03/2008
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente