Lareiras e Ícaro (Sonho disperso)
I.
E o fumo desce
Pesa-me esta leviandade
Vou ficando trôpego e aéreo nesta sala com lareira.
Os sentidos entorpecem
Os sentidos estão estragados
Tenho frio embora sue
Atinjo conclusões brilhantes
Que um estranho instinto diz-me que são a verdade
E depois perco tudo.
Ah
o velho e calmo escombro da moca
Onde passo por tudo
E não retenho nada
Mas vou sonhando...
II.
No meu sonho Ícaro não se limita a queimar as suas asas por ter
tido o descuido de se aproximar demais da tocha primária.
No meu sonho, Ícaro, sentindo que o voo e o ar eram insuficientes, mergulha
em comunhão com o sol e torna-se fogo, depois de ter trocado Creta pelo
Céu. Tudo acaba com o filho de Dédalo, agora uma chuva de luz,
a cair para a eternidade no abismo do mar.
III.
Perco-me em sonhos
Onde figura o abismo
A fronteira entre o fim e o vácuo
Onde tudo se encontra
(
)
Eu procuro o mar
Onde tudo se justifica:
A terra rude onde sonhamos
De nada serviria sem o grandioso final de ondas e espuma
O sol, esse eterno Narciso que
Escorre pelo céu no final de cada manhã
Em laranja e azul que se desfaz.
IV.
Eu evadi-me de Creta
Desprezando o meio-termo
Entre Céu e Mar
Sinto apenas o enclausuramento
De duas forças opostas que se anulam
E nas minhas asas reside a promessa de um incêndio
E as minhas veias circula um sangue que todos quereriam beber e cantar.
De que vale o mar
Senão como espelho do mundo e do abismo?
De que vale o sol
Se por cobardia não mergulhamos nele
E nos tornamos fogo?
De que vale o vento
Senão o sentimos como uma orquestra de tudo o que rodeia?
Eu, Ícaro, mergulho no Sol
E serei a tocha justificativa
De todas as existências!
V.
E caio no abismo
E amo a sua profundidade infinita
Por saber que ele é o memorial do melhor dos passados.
VI.
Ah
o melhor dos passados.
Lembras te amigo?
Das noites passadas ao vento:
Vila Nova e Lisboa eram o nosso ponto de luz
À volta apenas a aura da nossa existência.
E os nossos olhos
Kaleidoscópicos
Concentravam cada objecto
E fragmentavam-no em mil estilhaços de beleza
Nós éramos poesia
Naquelas noites estéticas
Onde tudo estava no seu lugar.
VI.
E de repente
Acordo
O fogo da lareira torna-se mais crepitante
A manta mais segura e aconchegante
Como se um velho amigo entrasse pela porta.
Porque eu conheço a música
Que ecoa agora pela sala
É uma guitarra da redenção
Do sonho de calma e glória
Vou sendo embalado numa tépida felicidade
Escondo-me nas memórias antigas
Que desfilam pelas bocas
Espectros alegres de um passado
De risos e felicidades que escorrem
No fumo
(Pedro Malta)
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