A Garganta da Serpente

Pedro Moura

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Leva

(pressente, onde se atravessa a liberdade aí nascerá a morte dos cheiros antigos)
já que saltas pesada por esses muros opacos
repara
há rabiscos inscritos no cimento que une os tijolos
repara
no sangue que te escorre dos dedos
(contempla)
asas brotam do frágil calcanhar
da fenda assassina
e na ferida em que perdes os sentidos atrofiados
(atrofiantes)
entreabre-se a porta por onde irrompe de novo a agilidade
(nada temas nesse sonho nem abismo nem falésia salta na imagem da tua pródiga leveza)
ao longe faróis trespassam a treva
alimentando os vagalumes que te percorrem o interior das pálpebras
na esteira do lençol espelhado em que mergulhas
(que levantas como criança ressuscitada)
descobertos
esses antigos muros opacos
transparentes perante a tua sombra agora
rabiscos transpostos para a espuma do desejo
(fecha os olhos com força sentirás o significado a instantes a segundos da pele)
dei-te o que não tinha
(ou seja devo-te tudo)
sem esperança de um olhar no vértice do ombro
onde pudesse plantar um desassossego mais
(uma árvore perene vermelha sonora)
não te consegui dar o que tinha
tive medo que te pesasse
(e segredas-me no ouvido da boca as tuas façanhas)
como o céu pesa sobre a ondulação rebelde
prefiro-te leve asas apenas sem corpo sem medo
sem amarras que te prendessem ao cais inundado
(não é uma lágrima apenas uma estalactite de sal que embeleza a estátua sem olhos vai)
pressinto-te para lá do fio da navalha
onde passo os dias a dançar visões
inventando amigos nas nuvens
incapaz de me lançar nos universos
que vou narrando na pele dos dias imensos
(aponto um cano de papel com lentes e procuro-te nos vales e montes que rasgam o nosso nome nas palmas destas mãos felinas)
vivo agora de recolher o lixo que deixas por aí
(que uso como almofada nos abrigos da cidade eminente)
sem asas nos pés
amaldiçoado com penas nas mãos do espírito
vogando
cruzando os cheiros antigos
ao procurar a travessa da liberdade
inscrevendo nos interstícios dos tijolos
(dos muros opacos)
os rabiscos que sei usares para saciares a sede de infinito
as palavras onde repousas a boca da alma
num beijo ensandecido de inquietude sôfrega
(esqueceste algo dentro de mim de que talvez nunca te dês conta que talvez te tenha roubado num escrúpulo de leveza)
sei que voltarás quando os muros se opacizarem
ao primeiro sinal de peso
ao ressurgir da prisão das pálpebras
à impossibilidade do saciar dessa sede demoníaca
(dar-te-ei de novo tudo o que não tenho e voltarás a partir com asas renascidas na fragilidade dos calcanhares)


(Pedro Moura)


voltar última atualização: 28/08/2003
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