A Garganta da Serpente

Pedro Moura

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Escolho

Sou um náufrago por falta de escolha
Agarrado a uma pena vogo por mares distantes
E nunca adormeço sem me saber só

À visão de um navio nado em desespero
E quando o escolho coberto de uma massa disforme
Mulheres e homens em desbragado festejo
Se torna perigosamente próximo
Encho o vazio de ar e submirjo anfíbio
Ninguém me há-de resgatar a este inferno

Ilhas costas praias esporádicas
São tentações que evito sem olhar para trás
E as pequenas formas de esperança
São apenas adagas para a minha pele
Demasiado sensível

Passo os dias a boiar neste oceano acre
Conto as nuvens e brinco com os animais imaginários
Brancos e cinzas perdidos no deserto de azul
Maravilhosos significados que prescindem palavras

O frio que cobre a minha pele
É apenas o espelho do fogo preso que crepita
Evaporando rapidamente as lágrimas que se formam
Incautas

Sou pirata e corsário sem presa
Os meus camaradas são os delfins libertos
E os tubarões sedentos que se saciam nas minhas feridas
Juntos saqueamos tesouros inimagináveis
Espumamos de raiva afundados em bebedeiras de sonho

A água guarda o meu trilho serenamente
Conta aos tritões jovens a odisseia do desafogado
Daquele que naufragou por vontade
A desventura transformada em aventura
E todos pasmam quando o conto nunca atinge a morte

Sulcos fundos nestas areias submersas
Nomeiam os escuros prados onde a mágoa amorosa
Das sereias rejeitadas alimenta algas demasiado sensíveis
E por horizonte apenas a aurora e o crepúsculo

O alimento das aberrações marinhas
As estrelas que vão caindo da árvore do infinito
A poesia cósmica que se escreve na orla das ondas
O princípio e o fim deste espírito em fuga
Náufrago escolho perdido e achado

Sombra das profundezas incosgniscíveis
Inveja pela falta de guelras
Que insiste em não deixar secar as asas
Aquele que falha o abismo
Nunca lamberá as paredes do céu

O vazio flutua pelas mortes da pior tormenta
Foge insensível dos significados terrenos
E nunca consegue ver a sua cara reflectidas nas águas
O vazio apaixona-se pelo inenarrável
Consome-se fogueira infernal no mar alto
Chama argentina sol em deserto aquático
Escuridão sorvedora desassossego que consome a treva

A pena afunda-se
O náufrago atinge o desespero
Luta que atinge o apogeu
Por onde sairá o fogo?

Um grito terrível provoca o maremoto
Que submerge toda a humanidade
Por uma hora ou duas

A solidão finalmente chega
E com ela o cheiro a inocência das flores que virão
Tudo recomeça quando as águas cessam o orgasmo
Terras reaparecem que podem ser de novo beijadas

O náufrago assobia e duas aves respondem
Cânticos puros acariciam a espuma das ondas
Que satisfeitas cospem um corpo incandescente
No areal dourado

O náufrago deita um olhar suplicante em volta
Antes de adormecer
A paisagem irá ser de novo nomeada
Aventura que marca um novo nascimento

O náufrago queda-se inconsciente e criança
Atrás deles os mares comemoram mais um ciclo
Da porta vaga da floresta húmida
Surge uma sombra de paz

Chove levemente
E a beleza espalha o seu hálito
Por todas as coisas do mundo

O náufrago morreu
Ao lado do seu corpo puro
Poisa levemente
Dádiva do grande pássaro
Uma pena alva

(20 de Outubro de 2002)


(Pedro Moura)


voltar última atualização: 28/08/2003
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