O DEUS ASTECA
Lá fora começa a chover.
A festa, a muito, já terminou.
Deitado sozinho, no escuro, no chão,
o mago se lembra que deve dormir.
O dia seguinte não tardará a chegar.
Mas não consegue, nem mesmo deseja.
Nem mesmo se importa.
Totalmente imóvel, sobre o leito improvisado,
os olhos abertos, fitando a penumbra,
o mago medita, sobre si mesmo e os outros,
procurando respostas, que nem mesmo existem,
enquanto os relâmpagos resplandecem na noite,
enquanto, no quarto, as meninas dormem,
enquanto as sombras parecem tomar vida.
Ao seu redor, caminham os fantasmas,
espectros de lembranças, antigas e recentes,
ora iluminados pelos relâmpagos,
ora silhuetas nas sombras.
Às vezes eles riem, às vezes choram,
às vezes dançam, às vezes bebem.
Eles estão sempre em movimento.
Alguns o mago reconhece,
alguns são amigos, outros nem tanto.
O mago vê um bêbado, sorridente e cambaleante.
Um rapaz oriental, silencioso e triste.
Caçadoras insaciáveis, quase sempre tão fúteis.
Uma bela menina, com seu belo namorado,
a menina por quem, outrora, o coração do mago batia.
...E o mago viu outros, tantos outros:
Viu um palco iluminado, onde uma feiticeira dançava,
tendo, finalmente, encontrado a si mesma.
Viu um anjo de cabelos cacheados,
tão perto e, ao mesmo tempo, tão distante.
Viu duas meninas, compartilhando o mesmo nome,
querendo ser tudo, menos elas mesmas.
Tudo isso o Mago viu, e ainda mais,
na penumbra ao seu redor.
E foi então que, um a um, desapareceram os fantasmas,
e mais uma vez o Mago estava só,
deitado no chão, naquela sala vazia,
exceto por um único fantasma,
que recusa-se a desaparecer.
O espectro se aproxima, passos delicados de pés descalços.
Ela senta-se ao seu lado, cruzando as pernas sem esforço.
Sorrindo com doçura, tem o rosto de uma amiga,
sobreposto ao de uma amante.
Mas, quando o Mago estende o braço para toca-la,
ela desvanece-se, como uma bruma,
que jamais esteve ali.
Trovões ressoam, estremecendo a casa.
As meninas, no quarto, continuam a dormir.
Sozinho nas sombras, sem sono, sem pensar,
o rosto do Mago volta-se para o quadro,
olhando para a face do Deus Asteca.
E então percebe, com medo, com susto,
que o Deus Asteca está olhando pra ele.
Lentamente, o Mago ergue-se,
ficando de joelhos diante do Deus.
O mais forte dos relâmpagos explode nos céus
e o estrondo do trovão, poderoso e elemental,
faz-se confundir com a voz do Deus:
Curve-se, mortal, tal direito lhe cabe,
se não demonstras medo, ao menos respeito
Ereto, insolente, o Mago questiona:
O que queres de mim? Por que falas comigo?
Mais uma vez, a voz ressoa, vibrante,
sem, no entanto, emitir nenhum som:
De tu nada quero, mortal arrogante,
exceto que dediques um pouco de atenção
ao que resta de mim, outrora altivo e fulgurante.
O Mago ouve atento, enquanto do Deus pronuncia-se:
Não vejo medo em tua alma, apenas surpresa,
não vejo receio, apenas curiosidade,
tu olhas para mim, direto nos olhos
como poucos mortais já ousaram olhar.
Amaldiçoado sejas tu, por confirmar minha desgraça,
eu, outrora poderoso, sou agora menos do que nada.
Ouça-me, mortal, e aprenda algo, se puder.
Eu que, hoje, pouco mais sou do que uma imagem,
já tive poder suficiente para matar e para criar.
Milhões de mortais, como tu, honravam meu nome,
que hoje, sequer pode ser pronunciado,
no seu idioma degradado pelas eras.
Ouça, mortal, este é o lamento de um Deus esquecido.
Não há mais altares em minha homenagem,
nenhum sacrifício a mim é ofertado.
Houve um tempo, mortal, em que toda uma raça,
vivente nas terras da América Central,
trocava mil vidas por uma única dádiva,
à qual agradeciam entoando louvores,
dando-me poder... oh!... tanto poder...
Mas isso foi no passado. O povo antigo não mais existe.
Meus adoradores, pouco a pouco, desapareceram,
levando consigo todo o meu poder.
Nunca mais minhas lendas foram narradas.
Nenhum coração humano é a mim oferecido.
Meus sacerdotes são menos do que pó.
Ó... mortal insolente, por que perdes seu tempo a ouvir-me?
Os ombros do mago tornaram-se pesados,
uma profunda tristeza abateu sua alma.
Diante dele estava uma tragédia cósmica:
um Deus de poder outrora infinito
hoje contido numa frágil moldura.
Mas o tempo é impiedoso, inútil lamentar,
a transformação é a maior das leis universais.
Com grande cautela o mago mediu suas palavras:
Ouço porque é de minha natureza ouvir,
e, se sentes gratidão por isso, peço-lhe agora que ouça-me:
Tu, que fazes parte de magnífica cultura,
gerado pelos sonhos de inúmeros mortais,
tu que, para eles, foste tudo aquilo que esperavam,
saibas agora, é tua hora de partir.
O estrondo de um raio soou como resposta.
O Deus, ultrajado, olhou o Mago com ódio mortal.
Mas este não abalou-se e continuou a falar:
Tudo o que existe tem um princípio, um propósito e um fim.
O propósito de um Deus cumpre-se,
quando seus adoradores não precisam mais dele.
É chegado o momento do fim.
Tu que vieste dos sonhos, deve aos sonhos retornar.
Não existe propósito para ti neste tempo,
este é o motivo de tua amargura.
Deves abandonar esta realidade, nela não tens lugar.
Outros deuses te substituíram,
outros, ainda, os substituirão.
Isso é tudo que tenho a dizer-te.
Desta vez não houve estrondo, apenas um lamento,
a amargura do Deus ofuscou seu orgulho,
embora apenas por alguns instantes:
Maldito sejas, mortal, por fazer-me ver
aquilo que meus olhos jamais quiseram enxergar.
Agora eu o odeio mais do que tudo,
porque estás certo, não posso ignorar.
Agora eu sei que não tenho esperança.
Meu poder se foi e nunca mais vai retornar.
Não tenho mais como acalentar nenhuma ilusão.
Tu tomaste o único consolo que me restara.
Nenhuma escolha mais me resta a não ser aceitar
a verdade inegável de suas palavras.
É chegada a hora de um Deus morrer.
Lá fora, a tempestade continua violenta.
No quarto, as meninas dormem, sem nada suspeitar.
O Deus silencia, agora para sempre.
Sua figura de pedra, representada no quadro,
de hoje em diante nunca mais falará.
O Mago esboça, então, um leve sorriso
e deita-se, novamente, agora mais relaxado.
E as meninas que dormem, tranqüilas, no quarto,
esta noite sonham com o Deus asteca.
Orgulhoso guerreiro, de rosto pintado,
dançando entre os corpos de mil inimigos,
tirando do sangue vida e vigor.
O Deus rodopia em sua dança de morte,
unindo-se, finalmente, ao seu povo que se foi.
Deitado no chão, aguardando o amanhecer,
o Mago ri, com incontido prazer,
mas o faz em silêncio, para não acordar
as meninas que dormem e sonham no quarto,
para não priva-las do grande privilégio,
o qual poucos mortais puderam usufruir,
de poder testemunhar a morte de um Deus.
(Rodrigo Emanoel Fernandes)
|