A Garganta da Serpente

Rodrigo Aguiar

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impressionante é que conseguimos nos abstrair do mundo exterior. venta, chove, um dia mais fabuloso e singular que o outro acaba em nossa cidade e a gente totalmente desligado disso. chuva é guarda-chuva, sol é sombra e suor, fim de tarde a gente vai embora, e é só. agora se sabe: a consciência humana é capaz de se desgarrar tanto assim do mundo do qual faz parte, como tudo. e tudo é o chão, e deu, não vai sair dali, que seja por mil ventos, por trezentos mil trovões, os terremotos são turcos, assim como os vulcões são... "mediterrâneos"... lonjuras assim, impossibilidades tais.

quando o cristianismo unificou todos os deuses em um só, e decretou que lua, sol, estrelas, árvores, rios, não são mais entidades divinas e conscientes, a ciência humana explodiu. o astro-deus do passado, para o pensador, tornou-se um objeto inerte: enorme e mísero pedaço de matéria. astros são parte de um todo, e objetos de estudo da consciência que o engoliu, triunfante. nesse todo a consciência humana é a única que racionaliza e percebe que o astro cumpre uma trajetória regular, por isso ela espalha o esquadro pelo escuro, e pensa.

a ciência já esteve muito perto da natureza. os primeiros intelectuais ocidentais entendiam a terra como uma entidade criadora, infinitamente capaz de se auto-renovar. pensa bem: acreditavam que o tempo jamais interromperia o ciclo natural. esses seres humanos -que habitaram o planeta no século XII- acreditavam que o ser humano estava no centro da racionalidade da criação, mas interagia com ela. por isso, TODO movimento seu, sua palavra, seu ofício diário, o tédio aparente de todos os seus movimentos, toda criação deste ser, enfim, era uma contribuição à maravilhosa obra da criação divina. para esse pensadores, deus existia, de fato. mas: não interferia em sua criação. fez o mundo e foi-se. retirou-se. no máximo, é um espectador, não o jogador pretendido pelas preces. deus está sentado, e confia no ser.  esses pensadores viviam num mundo estúpido: Garganta da Serpente - uma boa frase para o decreto autoritário condenando uma desgraça qualquer. aqui, a ciência mata.

séculos depois, outros pensadores imaginaram a terra como uma máquina, uma engrenagem perfeita, a Criação entre manivelas e roldanas simétricas e lisas. o ser humano, e todos os seus movimentos obedeciam determinações de um relógio infalível de ponteiros vastos, que mediam todo espasmo da existência: quedas, coitos, fugas. ALGUÉM ARRANCOU A RAIZ DO CHÃO. não bastou ao homem sentir-se superior, centro da criação - ao contrário, fomos capazes de dois movimentos suicidas: decretamos a falência de toda teologia que nos alçava a papéis redentores no -agora- absurdo total da "ordem natural das coisas" e nos definimos como  seres libertos da terra, para o bem e principalmente, fundamentalmente, para o mal das coisas todas, em nós e em nossa volta.


(Rodrigo Aguiar)


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