O RANCOR - INÉPCIA TRÁGICA
1
O rancor é assim: próximo do estômago,
aqui, onde o alimento já depois
molda-se nojo: esgoto que levamos
dentro. Torpor de morto que jogado
à indigência mantém-se preso ao verbo
instável da memória: luto fétido.
O rancor é assim: fúria corrosiva
incendiando de câncer as mais vísceras
que somos, as mais ínfimas tarefas
do costume: cardápio de cegueiras
fechado à fome da insônia. O rancor
é assim: doença que nos entreva ao nada.
2
Ter aos dentes o riso terminado
ao meio. O siso arrancado por inépcia.
Hemorragia da raiz ao rancor.
Extrair do maxilar a concreção
do afeto: gengiva infecta. Vazio
de boca que esfuge de si qualquer
resto de beijo: epicentro de busca.
Ressentir-se molar ao mastigar
a solidão incisiva do abandono.
No limiar do descaso, quase à morte,
permitir que se espalhem as devidas
negruras da cárie por sobre a cara.
3
O rancoroso atravessa as pessoas
sem olhar para os lados. Desconhece
as pernas aleijadas de obsessão.
Tampouco, reconhece nas costelas
qualquer resquício de atropelamento.
O rancoroso pouco se lamenta.
Pouco se mostra hábil ao descanso,
pois caminha demasiado no encalço
daquele que o quis vasilhame de ofensas.
Pouco pensa em desistir-se aos escolhos
da indulgência. O rancoroso escolheu
honrar-se à paciência vesga dos trágicos.
4
Dizer aos tornozelos as mazelas
do rancor, mas antes que a boca chegue
aos pés para depositar segredos,
pesar a cada mão os infortúnios
sobrantes do vício. Curvar a espinha
com cuidados de culpado. Talvez
ocorram acidentes no decurso
insidioso de humilhar-se ao chão.
Talvez os entraves do orgulho corram
por entre as vértebras do rancoroso,
que feito de matéria pouca, pouco
pode suster os motes da renúncia.
(Rubens da Cunha)
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