O autorretrato
Sou um poeta, um escritor do mato, mesmo amando a inteireza e a loucura das
grandes metrópoles. Mesmo que eu tenha armado a minha oca em São
Paulo. Eu nasci em Itaituba, no interior do Pará. É uma cidade
localizada às margens do Rio Tapajós, afluente do Amazonas. Talvez
o mais bonito. Sou filho de migrantes que mudaram para as terras paraenses na
década de 1970, com a abertura da Rodovia Transamazônica e Santarém-Cuiabá.
Vivi parte de minha infância em chácaras e sítios nessas
rodovias. Por isso, as imagens antigas que povoam a minha memória são
uma aglomeração de vacas, poeira, lama, estradas, caminhões,
barcos, barro, casas de chão de terra batida, rios, igarapés,
árvores, rezas, capelinhas, quintais e rostos suados.
Com seis anos, quase completando sete, fui morar na cidade e só nessa
época comecei a estudar num colégio público, Coronel Raimundo
Pereira Brasil. Era uma escola pequena de nome grande, nome de coronel do tempo
em que borracha e seringueira valiam ouro. A escola foi o desvendar de um mistério.
Lembro as primeiras letras ensinadas pela mãe. A professora contava e
recontava contos de fada. E hoje ouço gente que fala mal de Cinderela
e Patinho feio. Eu gostava de ouvir tudo aquilo. Foi essencial para a minha
formação. Como foi essencial o medo que eu tinha de ir até
o matagal atrás da sala de aula, onde diziam que morava a Matinta Perera.
Anos depois recebi uma bolsa do Colégio Isaac Newton. Lá concluí
o Ensino Médio e fiz peripécias como performances com poemas,
teatro e exposição de poesias.
Comecei a inventar de escrever aos treze anos, com a crença de que tudo
o que eu escrevia era bárbaro e empolgante. Sempre um pouco de prosa
e poesia. A minha mãe trouxe os poetas românticos, os professores
os modernos. Foram vários instantes de deslumbramento e as influências
estão em meus escritos: Mário e Oswald de Andrade, Drummond, Manuel
Bandeira e Ferreira Gullar. A leitura de Chove nos campos de Cachoeira
de Dalcídio Jurandir talvez tenha sido um dos maiores acontecimentos
em minha jovem vida literária. Foi com Dalcídio que descobri um
amor, até então não muito claro, pela Amazônia, pela
gente amazônica. Este olhar para o espelho, o reconhecimento das próprias
raízes, foi imprescindível. Eu tenho uma aldeia. E mesmo distante,
é de lá que vem esta força que me sustenta (força
pouca, força grande).
Morei um ano em Santarém e depois mudei para São Paulo, capital,
onde me formei em Filosofia. Hoje estou no mestrado em Educação
na Universidade de São Paulo ? USP. Vivo entregue a vários projetos
literários e escrevo e escrevo. Crio personagens e heterônimos.
Pouco foi publicado. Sou co-autor de dois livros pela editora In House: Educar
e aprender e Bate-papo no gramado.
A minha literatura habita entre o abrupto e o singelo - pelo menos é
essa a crítica que posso fazer agora. De um lado há a ternura
do cotidiano, a sagacidade do homem e sua terra. De outro a angústia,
a revolta, a pesquisa em torno da existência e da solidão humana.
É quase como se morassem em mim dois escritores. De um lado uma procura
pela filosofia do encontro de Martin Buber e a obra de Adélia Prado,
Manuel Bandeira, Mário Quintana e Manoel de Barros. De outro Sartre,
Beckett, Camus, Kafka, Hilda Hilst, Bergman e Milton Hatoum me atormentam.
Sou um escritor em construção.
(Rudinei Borges)
|