A Garganta da Serpente

Sidnei Olivio

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Assombrado

Era noite
eu já sabia:
o vento entrava de viés
pelas frestas da janela
em hermética cumplicidade
com o silêncio das ruas.

Já era inverno
eu sabia:
pelas mesmas frestas via
todas as janelas fechadas
do edifício à frente -
fronte da minha solidão.

(Há dias sentia
a água mais gelada
a cama mais gelada
o dia mais urgente...)

Perdi no final do verão
a nave da migração...
quem teve passagem, passou.

Perdi o vento do outono
na curva fechada das dúvidas -
quem teve asas e certezas, voou.

Eu fiquei. Estanquei
a carne roxeada
equilibrando-se na lâmina...
fino fio cortando, perfurando o tempo.

Eu fiquei. Permaneci
na paisagem inconsolada...
não há enfeite natural que resista
à estação branca e nua:
frutos de cera e flores de plástico
pontificadas de dejetos
de insetos volantes
(moscas domesticadas
que não polinizam esperanças
nem prenunciam floradas).

Desfaço, porém, o abandono permanente
e me satisfaço povoando-me:
afogo a sede na fonte de Baco
agora engarrafada e passeio
de mãos dadas com Drummond
entre as impurezas do branco
no concreto mundo da poesia
enquanto Mozart me aquece
no calor das claves de sol.


(Sidnei Olivio)


voltar última atualização: 25/09/2006
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