A Garganta da Serpente

Vicente de Carvalho

Vicente Augusto de Carvalho
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Sonhos Póstumos

Poupem-me, quando morto, à sepultura: odeio
A cova, escura e fria.
Ah! deixem-me acabar alegremente, em meio
Da luz, em pleno dia.

O meu último sono eu quero assim dormi-lo:
— Num largo descampado,
Tendo em cima o esplendor do vasto céu tranquilo
E a primavera ao lado.

Bailem sobre o meu corpo asas trêmulas, asas
Palpitando de leve,
De insetos de ouro e azul, ou rubros como brasas,
Ou claros como neve.

De entre moitas em flor, oscilantes na aragem,
Úmidas e cheirosas,
Espalhando em redor frescuras de folhagem,
E perfumes de rosas,

Subam, jovializando o ar, canções suaves
— A música sonora
Em que parece rir a alegria das aves,
Encantadas da aurora.

E cada flor que um galho acaso dependura
À beira dos caminhos
Entreabra o seio ao sol, às brisas, à doçura
De todos os carinhos.

Passe em redor de mim um frêmito de gozo
E um calor de desejo,
E soe o farfalhar das árvores, moroso
Como o rumor de um beijo.

Palpite a natureza inteira, bela e amante,
Volutuosa e festiva.
E tudo vibre e esplenda, e tudo fulja e cante,
E tudo sonhe e viva.

A sepultura é noite onde rasteja o verme...
Ó luz que eu tanto adoro,
Amortalha-me tu! E possa eu desfazer-me
No ar claro e sonoro!


(Vicente de Carvalho)


voltar última atualização: 07/06/2005
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