A Garganta da Serpente

Vinicius

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Claustrofobia

Claustrofóbico de mim mesmo,
Relevo o mundo inteiro por ser alheio ao tempo.
Não me surpreendem as alegorias,
O espaço que habito
Transcende a luz que não o ilumina.
Misturado à sombra,
Enquanto antigas vozes me despem de pudores mortais,
Espero nada passar...

Jogo a vida ao alto, agora.
Logo eu,
Andarilho de putas formais,
Maltrapilho das estrelas...
A chuva lava meu quintal de sonhos,
Enquanto a efêmera fonte transborda raios de sol.
Corredores de ventos,
Eu, sombra tornada,
Espalho-me por entre as camas
Sem me perder no labirinto dos lençóis.
Adormeço nos braços vulgares,
E minhas paixões fervem por entre meus dentes...

As serpentes em meus cabelos despertaram.
Aquele semblante, transformado em pedra, traduz o asco num sorriso tosco.
E eu viro-me de costas, e caminho entre as nuvens.
Talvez, em algum canto naquele quintal lavado de sonhos,
Eu, sombra tornada,
Encontre algo para me distrair.
Talvez essa noite eu não perambule por entre vielas,
Não me embriague na taverna mais imunda,
Nem me deite com a mais formosa desgraçada.

E adormecerei nos braços vulgares,
E em meus sonhos cavalgarei quimeras em volúpias,
Cairei de todas as montanhas,
Voarei por todos os sóis,
Perderei-me em meus próprios prazeres,
Atrevidas horas a fio, roncando, como um porco imenso,
Desejando uma cama para me espalhar.
E acordarei no labirinto dos lençóis,
Acho que não me perderei.
Mas no colo vulgar estarei atento,
E aquele cheiro que invade meu sentido mais urgente
Não me espantará se eu acreditar...

Sim, há meros desejos embriagantes em mim agora.
Não tão meros, porque a força densa invade o solo fértil em que piso.
Dele nascem violetas,
Que colho para enfeitar as janelas.
E ao abri-las,
Permito-me despir com o sol,
Permito-me alimentar dos sonhos vivos.
Alheio que sou,
Deito-me no chão que a lua agora ilumina.

Sim, claustrofóbico de mim mesmo,
Claustrofóbico de estrelas infernais,
Corro e escarro diante do que se aproxima.
E que venha o tempo,
Que venha a prostituta sagaz que corrompe o dia.
E que venham as gargalhadas das noites rasgadas,
Embriagados de álcool, amor e horror.
Sim, despido da vergonha alheia,
Mostro-me inteiro para o espelho que reflete a sombra tornada.
O espelho não reflete ali a minha imagem.

Sombra enluarada, que vês sobre aqueles ombros nus?
Enxergas as pedras atiradas revestidas de sal?
Ou as sandálias que um dia pisaram aquele solo fértil?
Vês as violetas naquelas antigas janelas?
Não, elas não as enfeitam mais.

Obscuro céu cinza que reflete ainda um mísero raio de luz,
Essa é a paisagem de quem restou,
De quem confundiu,
De quem morreu e morre a cada dia,
Daquele que hoje arrasta os pés naquele solo árido,
Espesso,
Tranqüilo.

Rumo aos braços da noite,
Beijo os sonhos castanhos deitado na cama de labirintos.
Cansado, esperarei o amanhã.
Revirarei todos os baús do dia,
E encontrarei as fendas ocultas da noite,
Aquelas que deveriam me abrigar.
Cansado, dormirei no colo da mais alva puta,
Absorvendo os germes do meu não ser.

Raia o dia.
Abro os olhos com temor e calma.
Acredito então que ali estou, longe e perto,
Ao lado e atrás,
Ajoelhado, faminto.
Devoro os sóis. Alimento-me de palavras que não direi.
A fumaça que me envolve não me incomoda.
A quietude, sim.

Aquilo que antes me espreitava,
Escondido ali, entre os lençóis,
Agora se apresenta.
A enorme boca, salivante,
Lambe-me agora as pernas, esperando para ouvir o que não gozarei.
Abro a janela, mas o sol não entra.
Abro a porta, mas a fumaça continua lá.
Todo o cinza quer ficar.

Janelas e portas abertas,
Aquelas pernas continuam ali, arreganhadas...
Eu me arrasto até ali, e provo o que me é oferecido.
Esfrego meu desejo por entre aquelas pernas,
Enquanto as línguas se misturam e se reconhecem.
Em meio ao cinza,
Á fumaça,
Penetro a dor que a mim também pertence.

Tiro a poeira cósmica de cima do que restou do labirinto.
Revejo todos os caminhos, e decido me perder ali.
Entro, mas conheço todos os caminhos.
Como me perder no que não quero?
Porque entender aquilo que me agride,
Me fere,
Me faz consciente de quem sou?
Enquanto espero, assopro a poeira dos meus ombros.

Então que amanheça o dia. Mesmo cinza.
Eu me reconheço ali, naquele meio.
Eu me entendo ali, na frente do espelho, enquanto sombra tornada.
Eu me permito despir,
Eu me permito usar aquelas pernas arreganhadas,
Eu me permito penetrar em todas as minhas dores,
Eu me permito lamber aquilo que me atormenta.
E me permito gozar no cinza do céu.

Que venham as horas dos tempos,
Que venham as putas, as quimeras, as volúpias e os labirintos,
Que venham os raios de todos os sóis,
Que eles banhem esse quarto escuro,
Que eles lavem as paredes de luz,
Eu agora quero me levantar.

O vento uivava pela fresta da porta.
A chuva maltratava meus ombros, mas não entrava pela janela.
As violetas floresciam em meio à tempestade,
E eu acompanhei pelo lado de fora.
Derretidas palavras me ocorriam,
E eu as cuspia, uma a uma, sem critérios, sem pudores, sem medos.
Cinzentas formas se debatiam em meio à chegada da luz.

Meu rosto agora ardia de todos os sóis.
Os olhos não se abriam, apenas se banhavam.
A verdade, ruína duradoura, tremia enquanto se afastava.
A sombra tornada, atenta, observava tudo de muito perto.
Aquelas pernas corriam, rumo a não sei onde,
E sumiam na paisagem sóbria do dia que prometia.
Oscilante, serei meu próprio abismo e cárcere,
Mas voarei em meu próprio céu,
Irei aonde eu quiser,
E quando estiver cansado,
Despencarei de mim mesmo,
Nos próprios braços meus.


(Vinicius)


voltar última atualização: 11/02/2009
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