A Garganta da Serpente

Violeta Teixeira

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Canto deslumbramentos melancólicos:
O deleite da descoberta do sexo das pedras;
Os gemidos, os gritos, os ritos dos bichos da terra;
O murmúrio líquido das águas subterrâneas;
O fogo grávido das entranhas das rochas;
A queda espontânea das estrelas;
As querelas frívolas das fracturas dos continentes;
O humor volúvel dos rios, silente, dos sistemas solares;
A bravura dos mares e dos oceanos pacíficos;
As babas de seda das aranhas repelentes;
As pegadas fúnebres nos passeios dos poemas;
As frivolidades dos rendilhados
De mármore dos jazigos abandonados;
A beleza granítica ou basáltica das campas;
A degradação das fotos e das flores dos mortos;
As bebedeiras da Lua sobre os ciprestes
Dos cemitérios desafectos; as folhas nimbadas de luz
De cobre e de mistérios; a ruína bolorenta dos
Sentimentos, nos corações gélidos dos solitários;
O ranger medonho de passos nos soalhos das
Sombras dos espectros humanos; os fenos oxidados
De chuvas ácidas, na alma dos excluídos de um tecto de
Ternura ou de uma migalha de afecto; as ilusões ingénuas
E pérfidas das almas lavadas; a amargura das injúrias;
A beleza sublime das traições, sem mácula; o amarelo
Enxofre dos hipócritas; as vias dos desvios conjugais,
Em nome da loucura fogosa e límpida, sem fissuras nos
Corações que Não entregam a pureza de que se sustentam;
Os corpos sem Sol, que se entreguem a corpos - outros,
Por uma migalha de luz, por um leito belo de frases efémeras,
Por um punhado de inverdades, por um novelo de calor,
Com uma lucidez de pedra, anunciando, a breve trecho,
A morte de um agasalho, que vale toda uma vida, sem amor,
Bebendo, com avidez feroz as mais ínfimas gotas de prazer,
Sofridamente, sem queixumes fúteis e inúteis; canto as mãos
Vazias de exilada, as gretas da geada nos dedos dos sentidos,
Os calos do pensamento e dos sacrifícios altruístas; o alvoroço
Das esperas, sem frutos, sem colheitas de pão, de broa ou de
Cápsulas de papoilas; os moinhos que moem nada, mas as
Águas os movem; canto as navegações à volta do mundo,
Feitas por aqueles que nunca se levantam de uma cadeira de
Braços, e são infelizes como as baleias e os cachalotes que vêm
Dar, por vezes à costa, num rito de suicídio colectivo; canto
A solidão, pesando mais peso do que peso, carregando as
Palavras dos poemas, como se fossem pedras, se afundando,
Preciosas e indefesas, em poças de sangue, sem fundo.

Canto-me o descalabro compulsivo do álcool.
Canto - me a loucura. Canto-me os desvarios
Lúcidos da química do corpo, sem alma.
Canto-me o que me não canto, porque também sou,
Ainda que me não diga, a ternura que se recusa
A se sentar convosco na praça pública da leitura.

(in PARTOS DE PANDORA, Magno Edições, 2001)


(Violeta Teixeira)


voltar última atualização: 10/02/2006
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