A Garganta da Serpente

Virgínia Cellestte

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Evocação

I
Não memorizo aldeias
Nem aldeões:
Meu cabelo ao vento
              - lúcido, tardio -
Exibe o corte, a ruptura
a outra margem;
A imagem destorcida em mim
Não é doce nem crédula:
Pus a vida acima da Era;
O corpo acima da cela;
Os pés acima do cavalo...
              ... e, se assim não fosse,
              aí sim, seria errado.

II
Mar. Terra. Cana. Terra-Seca:
Não é preciso ir muito, para ser estranho...
Das entranhas do dia, nasço
              - não se nasce do nada,
              se surge do ambíguo.

Não tardo nem contento, contemplo;
E o chover não mais distrai
O piscar de olhos
              - rebento do adeus
              sem vestígios.

Ah, atordoar infantil!
Versos de outrora conjugados, lentos
Nada mudou...
              ... ainda me sou,
              rebentar violento.

III
Pernas acima da Terra.
Pó por cima de nós, dos sóis, dos séculos
              (e não há outra ruptura
              senão ser girassol!)
O cavalo segue abaixo, distante
Não é preciso estar acima, para estar melhor...
              Não me abarco
              E piso,
Como quem pisa um tapete, nuvens
Detendo nas mãos um telefone...
O que ferirá mais, senão a palavra?
              Palavra dúbia.
              Anti-prece.
              Anti-deus.

IV
Contemplo. A chuva. O guarda-chuva. A náusea.
Nos olhos pardos, o passado pesa...
E há ferida: quanta dor inflama!
Quisera não ser eu, poeta ou passo;
Palácio erguido num confuso brio:
Meus sonhos são faces do céu que crio
Poemas ávidos, avós reversos...
              ... e isso, ninguém sabe.

V
Na timidez, procuro-me só:
Assim sou no extenso vão da palavra!

Quisera ser morena, alva - viúva
Tudo menos poeta e colibri:

Pousar e ser única - aldeã!
Talvez feliz.

VI
Campo, campina. Galo-de-Campina.
Há tanto, tantas lembranças mortas...
O verde sucumbiu aos olhos
Que, no chão, semeiam concreto.

Na outra margem,
              lá, sempre lá,
Fico. Reservo. Esqueço...
Lanço ao rio o tonel
              o túnel de meus anos.

Não hei de lembrar, como sempre.

VII
Padeço muito e lento,
              muito lento.
Se chuvas, lágrimas, seres,
esvaem-se, algo fica...

Certas canções não sanam as lacunas do tempo;
Tempo-corpo, poema.

(Ah, se não fosse sopro, não fosse águia, cerveja...
se talvez flechas, não telefone...
se apenas mulher... não essa sina!)

VIII
Cruzar bares, mares, risos
E na outra margem
              a palavra está...
Cardíaca, a alma reclama
Seu desejo último
              - Ávida, certa.

IX
Vivo;
Como isso não diz muito, adeus...
Sempre planícies por trás de serras
E rio entre montes; sigo.

Não responda o adeus
(nem a deus peço):
Sempre mais uma ponte e um riacho
E um cavalo para domar...

X
Só,
Mas há outra margem;
E, por ser ainda crédula,
Um novo deus.


(Virgínia Cellestte)


voltar última atualização: 09/12/2005
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