A pista sinuosa na serra à noite, a neblina parecendo gelo seco deixa
o escuro lavado de chuva branco e as árvores da Mata Atlântica
misteriosas. Venta. Curvas da rodovia manobradas sobre o precipício e
a fila de carros no engavetamento com suas lanternas vermelhas acesas fazem
sentir-me em um jogo tridimensional, mas logo verei tudo diferente. A bebida
corrói meus sentidos devagar.
Que espécie de realidade é essa, tampouco sei quem sou, o que
o amanhã me trará, vivo com medo.
O que se faz quando você joga suas próprias convicções
na privada e dá a descarga? Tem uma vida inteira pra se arrepender ou
pra esquecer de tudo no minuto seguinte?
Tem pessoas diferentes morando dentro de mim. Duas, dez, cem. Elas brigam entre
si. Parece que há um consenso sobre como devo agir, mas quando alguém
desconhecido toma o controle e faz uma escolha que vai pela contramão
de tudo aquilo que já se fez, é como se o cortiço entrasse
em convulsão.
Não sei mais quem sou e nem em que acredito. E sempre precisei de valores
para suportar essa vida incompreensível, mas hoje não pude contar
nem comigo para defendê-los.
Como é possível que tudo isso seja tão importante para
mim, tantas as pessoas são incoerentes o tempo todo e nem se importam,
mas eu sempre me preocupo com as minhas ações...
Queria ser vazia e fútil, queria que nada me importasse, queria permanecer
sob efeito de alucinógenos o tempo todo, qualquer bobagem de moda ou
de trabalho que me tomasse o tempo que gasto pensando em meus atos, tentando
me entender. Sofrendo, somente, sem chegar a lugar algum com isso.
O frio está cortando meus pulsos.
Sei, sei, as pessoas erram o tempo todo e se arrependem. Talvez se eu me perdoasse,
mas, e se o futuro não me perdoar?
Se eu acelerar mais e não girar o volante naquela curva logo à
frente aquele muro irá ceder?
Estar livre da ansiedade, eu sentiria medo por um momento, mas tudo logo estaria
acabado...
Por quê? Vai, liga esse rádio, esquece o que aconteceu e espera
pelo futuro ao invés de tentar vencê-lo adiando-o para sempre.
"... e você estava esperando voar,
mas como chegar até as nuvens com os pés no chão?"