Os desenhos abstratos e ondulantes em preto e branco do calçadão
de Copacabana moravam no coração do menino. A 'princesinha do
mar' bailava em seus pensamentos. A vista guardada em seu peito, recheada com
as cores do céu, do mar e da areia, contrastavam com a vida em preto
e preto que vivia, junto com a família, em casa de um só cômodo
numa favela de Copa. Em casa, ou nos escombros onde dormia, nada lembrava a
presença de uma quase criança, ainda; nem bola de menino havia
no lugar. Tampouco a forma física de Vaguinho, apelido de Vagner da Silva,
refletia seus treze anos; aparentava dez. A desnutrição da não-saudosa
infância modelava seu corpo franzino. As pernas compridas, marcadas pela
violência doméstica: "Aqui, ó, bem aqui, na coxa tem
a marca da porrada de cinto que levei do meu pai com cinco anos.", disse
à professora voluntária da escola de futebol em que estava matriculado.
Aulas gratuitas para os menores da comunidade carente, nome bonitinho que capeava
o projeto. "Eu moro na favela mesmo, ué!".
As aulas de futebol aconteciam três vezes por semana em Copacabana, onde
"todo mundo deve de ter uma bola", pensava. "A professora explica
coisas sobre uma tal 'cidadina', antes do professor de futebol dar as aulas
de bola pra nós."
- Cidadania. - corrigia a professora. - É o direito e o dever que cabe
a cada cidadão.
- Cidadão é a gente, né? - explicava à turma o
sabido Vaguinho.
"Nenhuma menina quer me namorar", reclamava, e a professora explicava
que se ele buscasse seus sonhos, eles se realizariam, e ele seria alguém;
o resto era consequência.
- Do que você gosta, Vaguinho?
- De bola e de namorar, mas eu nunca namorei.
- Como vão as aulas na escola? - Sim, porque para participar das aulinhas
de futebol, tinha que ter presença na escola e, ainda, precisava ter
sonhos.
- Mas eu tenho sonhos.
Seu pai e seu irmão eram usuários de drogas, e Vaguinho também
o foi, até agora, até... Antes das aulinhas com a bola, ele cheirava
cola. E o crack - fumado pelo pai e pelo irmão - era o seu antigo sonho,
mas agora não mais; a professora formava craques na escolinha e ele seria
um. Seu pai e irmão, entretanto, não conheciam a bola, então
seguiam os velhos sonhos. A mãe não; ela nunca sonhou; acordava
cedo para trabalhar como empregada doméstica e sustentava a comida e
a morada de todos. O vício era mantido pelos furtos cometidos pelo irmão.
Mas com Vaguinho a vida correria diferente, a mãe pensava e a professora
acreditava. Tinha sido reprovado na escola inúmeras vezes e por isso
vagava. Vagava e por isso era reprovado na escola. Assim era o ciclo de sua
vida. Mas ele queria mudar, e desde que conhecera a bola, não gazeteava
mais, estudava para as provas.
- Não quero mais cola. - dizia.
"Esse muleque tá estranho", pensava o irmão. Vaguinho
estava mesmo estranho àquilo tudo que o rodeava desde o começo
de tudo. O menino estava existindo. Depois das aulas de futebol, trabalhava
como carregador de um supermercado e ganhava uns trocados, mas não contava
nada em casa, pois não queria comprar droga. "Quero uma bola só
pra mim", repetia em seus novos sonhos.
- Um menino tem direito a uma bola? - perguntou na aula de cidadania. E, em
campo, era o mais ágil; dava dribles, cobrava as faltas e os escanteios,
só não cobrava pênalti. Tinha medo de errar, o goleiro ali,
a enorme rede, ele e o outro, ele e a rede, ele e a bola. E se errasse? Deixaria
de ser o 'tal', como passou a ser conhecido.
No final de mais um dia, enfim, chegou o dia de juntar o dinheiro do dia com
as economias escondidas, enterradas num buraco nos fundos da casa. Marcaria
seus gols com sua própria bola. Ansioso, cavava e cavava o buraco, mas,
ué, onde estava? "Cadê? Ai, saco, droga, cadê a droga
do dinheiro?!" Pai e irmão fumaram ou cheiraram a perseverança
do menino. Vaguinho triste. Vaguinho só. Vaguinho com os restos de trocado
daquele dia, não desistia jamais. Costurou mal costurado o valor no calção
puído, e dormiu agarrado à esperança de um dia sair dali.
Acordou, vestiu o uniforme por cima do dinheiro. Vagou tonto pelas ruas. Foi
direto para a aula de futebol pediu desculpas à professora, não
conseguira ir à escola, estava triste demais. E a professora, sem entender
a razão, imaginava os porquês. Viu o menino passar as únicas
horas gostosas do seu dia temperadas com a amargura de sua alma. No fim da aula,
um sorriso no rosto do colega antecipava algo estranho. Vieram todos. "Parabéns
pra você, é bigue, é Ra Tim Bum, e pro Vaguinho nada? Tudo!"
O professor carregava o bolo e a professora um pacote em papel colorido, cuja
forma já mostrava o que era. Era, era... era ela. A bola tão sonhada
no dia do seu aniversário. Um beijo no rosto da professora, o bolo devorado
por todos, a alegria e a corrida até a praia de Copa, os colegas atrás
dele.
O time se improvisou ali, entre os colegas de turma e outros meninos da rua.
Vaguinho pegou a bola, o temor diante da 'sua' bola, o cheiro de mar, a areia
nos pés, a bola rolando, a bola dançando, ele orquestrando tudo,
sua bola girando no ar, companheira dos calcanhares de todos, amiga dos pés
de Vaguinho, que cobrou escanteios, cobrou faltas, fez embaixadas nos intervalos
dos lances e sofreu uma falta, na área do gol. Não ia cobrar o
pênalti. Não ia cobrar o pênalti? Não, ia cobrar o
pênalti, sim, sim, e a sua vida ali, aos seus pés, a sua bola ali,
de frente para o gol, para o goleiro, para a rede, e ele chuta e qual o problema
se não acertar? A vida era assim, a bola também, e a bola era
dele. E a bola é dele, é de Vagner da Silva, é toda sua
a bola, e é, é, é gol !