A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Dentes sem leite

(Cynthia Oliveira)

Os desenhos abstratos e ondulantes em preto e branco do calçadão de Copacabana moravam no coração do menino. A 'princesinha do mar' bailava em seus pensamentos. A vista guardada em seu peito, recheada com as cores do céu, do mar e da areia, contrastavam com a vida em preto e preto que vivia, junto com a família, em casa de um só cômodo numa favela de Copa. Em casa, ou nos escombros onde dormia, nada lembrava a presença de uma quase criança, ainda; nem bola de menino havia no lugar. Tampouco a forma física de Vaguinho, apelido de Vagner da Silva, refletia seus treze anos; aparentava dez. A desnutrição da não-saudosa infância modelava seu corpo franzino. As pernas compridas, marcadas pela violência doméstica: "Aqui, ó, bem aqui, na coxa tem a marca da porrada de cinto que levei do meu pai com cinco anos.", disse à professora voluntária da escola de futebol em que estava matriculado. Aulas gratuitas para os menores da comunidade carente, nome bonitinho que capeava o projeto. "Eu moro na favela mesmo, ué!".

As aulas de futebol aconteciam três vezes por semana em Copacabana, onde "todo mundo deve de ter uma bola", pensava. "A professora explica coisas sobre uma tal 'cidadina', antes do professor de futebol dar as aulas de bola pra nós."

- Cidadania. - corrigia a professora. - É o direito e o dever que cabe a cada cidadão.

- Cidadão é a gente, né? - explicava à turma o sabido Vaguinho.

"Nenhuma menina quer me namorar", reclamava, e a professora explicava que se ele buscasse seus sonhos, eles se realizariam, e ele seria alguém; o resto era consequência.

- Do que você gosta, Vaguinho?

- De bola e de namorar, mas eu nunca namorei.

- Como vão as aulas na escola? - Sim, porque para participar das aulinhas de futebol, tinha que ter presença na escola e, ainda, precisava ter sonhos.

- Mas eu tenho sonhos.

Seu pai e seu irmão eram usuários de drogas, e Vaguinho também o foi, até agora, até... Antes das aulinhas com a bola, ele cheirava cola. E o crack - fumado pelo pai e pelo irmão - era o seu antigo sonho, mas agora não mais; a professora formava craques na escolinha e ele seria um. Seu pai e irmão, entretanto, não conheciam a bola, então seguiam os velhos sonhos. A mãe não; ela nunca sonhou; acordava cedo para trabalhar como empregada doméstica e sustentava a comida e a morada de todos. O vício era mantido pelos furtos cometidos pelo irmão. Mas com Vaguinho a vida correria diferente, a mãe pensava e a professora acreditava. Tinha sido reprovado na escola inúmeras vezes e por isso vagava. Vagava e por isso era reprovado na escola. Assim era o ciclo de sua vida. Mas ele queria mudar, e desde que conhecera a bola, não gazeteava mais, estudava para as provas.

- Não quero mais cola. - dizia.

"Esse muleque tá estranho", pensava o irmão. Vaguinho estava mesmo estranho àquilo tudo que o rodeava desde o começo de tudo. O menino estava existindo. Depois das aulas de futebol, trabalhava como carregador de um supermercado e ganhava uns trocados, mas não contava nada em casa, pois não queria comprar droga. "Quero uma bola só pra mim", repetia em seus novos sonhos.

- Um menino tem direito a uma bola? - perguntou na aula de cidadania. E, em campo, era o mais ágil; dava dribles, cobrava as faltas e os escanteios, só não cobrava pênalti. Tinha medo de errar, o goleiro ali, a enorme rede, ele e o outro, ele e a rede, ele e a bola. E se errasse? Deixaria de ser o 'tal', como passou a ser conhecido.

No final de mais um dia, enfim, chegou o dia de juntar o dinheiro do dia com as economias escondidas, enterradas num buraco nos fundos da casa. Marcaria seus gols com sua própria bola. Ansioso, cavava e cavava o buraco, mas, ué, onde estava? "Cadê? Ai, saco, droga, cadê a droga do dinheiro?!" Pai e irmão fumaram ou cheiraram a perseverança do menino. Vaguinho triste. Vaguinho só. Vaguinho com os restos de trocado daquele dia, não desistia jamais. Costurou mal costurado o valor no calção puído, e dormiu agarrado à esperança de um dia sair dali.

Acordou, vestiu o uniforme por cima do dinheiro. Vagou tonto pelas ruas. Foi direto para a aula de futebol pediu desculpas à professora, não conseguira ir à escola, estava triste demais. E a professora, sem entender a razão, imaginava os porquês. Viu o menino passar as únicas horas gostosas do seu dia temperadas com a amargura de sua alma. No fim da aula, um sorriso no rosto do colega antecipava algo estranho. Vieram todos. "Parabéns pra você, é bigue, é Ra Tim Bum, e pro Vaguinho nada? Tudo!" O professor carregava o bolo e a professora um pacote em papel colorido, cuja forma já mostrava o que era. Era, era... era ela. A bola tão sonhada no dia do seu aniversário. Um beijo no rosto da professora, o bolo devorado por todos, a alegria e a corrida até a praia de Copa, os colegas atrás dele.

O time se improvisou ali, entre os colegas de turma e outros meninos da rua. Vaguinho pegou a bola, o temor diante da 'sua' bola, o cheiro de mar, a areia nos pés, a bola rolando, a bola dançando, ele orquestrando tudo, sua bola girando no ar, companheira dos calcanhares de todos, amiga dos pés de Vaguinho, que cobrou escanteios, cobrou faltas, fez embaixadas nos intervalos dos lances e sofreu uma falta, na área do gol. Não ia cobrar o pênalti. Não ia cobrar o pênalti? Não, ia cobrar o pênalti, sim, sim, e a sua vida ali, aos seus pés, a sua bola ali, de frente para o gol, para o goleiro, para a rede, e ele chuta e qual o problema se não acertar? A vida era assim, a bola também, e a bola era dele. E a bola é dele, é de Vagner da Silva, é toda sua a bola, e é, é, é gol !

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br