A Garganta da Serpente
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Encontrando o Eu Perdido

(Clevane Pessoa de Araújo Lopes)

Hulda entreabriu os lábios de surpresa e puro prazer. A miniatura, emoldurada em dourado rococó, mostrava uma paisagem japonesa. O tori, a ponte, a gueixa... Entrou e pediu para ver de perto. a vendedora disse que a pequena tela era apenas para decorar. Não estava à venda. Pertencia ao patrão... Voltou à calçada e começou a olhar os detalhes do quadro. A estampa do quimono da gueixa, profusa em detalhes. Conhecia-os bem. Estremeceu, arfou, o coração arrítimico. Atravessou a rua e foi sentar-se num banco em frente, sob a guarita de esperar ônibus.

O filho médico insistira em que caminhasse - ela então passava mais ou menos uma semana caminhando num bairro. Pegava a condução perto de seu prédio: o primeiro ônibus que passava com um nome não ainda percorrido. Descia perto da igreja, praça, supermercado. Aí, começava a explorar o comércio. Nada comprava, pois tinha medo de assaltos e saía de casa apenas com vales-transporte que comprava do neto, estagiário na Telemig.

A lembrança chegou com seu manto de estrelas e a cobriu. As aulas de pintura. A mãe a encaminhara porque "as moças de família devem saber alguma arte". Como tinha voz pequena, nenhuma vocação para tocar um instrumento musical e não dava conta de executar trabalhos manuais, como bordar crivo e ponto de cruz, fazer tricô ou crochê, foi encaminhada para a pintura, já que, na escola, sempre tirava dez em desenho.

No primeiro dia, chegou cedo ao ateliê trazendo a tradicional maleta de tintas, pincéis, espátulas e palheta. Ficou parada à porta do salão cheio de cavaletes. Era tímida e não sabia para qual deles deveria se dirigir. A voz chegou-lhe junto com a mão grande que a segurou pelo braço, impulsionando-a para frente:

- Você deve ser a Hulda. Pegue aquele lugar ali.

Não sabia qual, mas não desobedeceu, parando em frente ao primeiro à sua frente e verificando que a tela apoiada nele já tinha um esboço à "fusain".

- À direita, à direita, guiou a voz.

Sem jeito, acomodou a maleta de madeira com seu nome pirografado (a mãe tinha mania de marcar tudo com iniciais, nomes) numa pequena mesa alta à sua direita e começou a tirar os tubos, a palheta. Uma pequena toalha com seu monograma, bordado, estava dobrada e ela a desdobrou, estremecendo quando a risada do professor troou:

- Ah! Trouxe toalhinha! Bastam uns trapos, menina, molhados em tiner, aguarrás ou terebentina.

E virando-se para dois alunos que acabavam de entrar, exibiu-lhes a toalhinha branquíssima. As risadas a fizeram corar. Sentiu-se a um tempo perplexa, e furiosa. Teve vontade de fugir, mas ter de enfrentar o interrogatório materno pareceu-lhe pior. Resolveu ficar, apesar de. E abrindo um largo sorriso, riu junto com os demais, murmurando: "Coisas de mãe..." A jovem que estava à sua direita, tocou-a solidariamente no ombro:

- A minha também fez isso, há uns anos atrás... só não tinha iniciais...

- Ela é maníaca por uns nomes bordados, pintados, gravados. Olhem a tampa da caixa!

Expondo-se, antecipava as gozações, anulando-as possivelmente. Agora, todos lhe pareciam simpáticos e, no final, adorou a aula. O professor era engraçado, mesmo quando tentava ser severo e exigente. Na semana seguinte, teve-o sempre por perto. Às vezes desmanchava com a palma da mão, o esboço que ela fizera. Chegara a jogar-lhe um pedacinho de fusain quando a pegou de conversa com o Léo, o rapaz de barbicha à sua esquerda, um pouco atrás. É que o Léo ficava, entre dentes, fazendo-lhe elogios ou troçando dela.

Pediu à mãe para ir todos os dias, quando soube que Léo fazia isso:

- Quem vai diariamente, já está desenhando muito melhor que eu, mãe! Não quero ficar atrás...

D. Mirtes concordou. Desde que não deixasse as notas escolares caírem. Estava terminando o segundo grau integrado, ia aprestar vestibular ao final do ano.

- Quero fazer Artes, talvez na FUMA, mãe.

A mãe não achou ruim. Preferia que a filha se casasse do que fizesse carreira: mulheres bem sucedidas eram muito independentes para o seu gosto. Faculdade moça deve fazer enquanto espera o casamento, dizia às amigas. Então, não faria mal prestar vestibular para um curso tão fraco. Além disso, pintar quadros acalma e costuma encantar as sogras, pensava sempre raciocinando como as mães de sua época.

Mas Hulda foi adquirindo um estilo próprio, participou de uma coletiva, ilustrou alguns livros. Durante todo o tempo, ficava com Léo, sem saber ao certo se namoravam, porque durante os finais de semana ele "sumia". Dizia que ia acampar, quase sempre a convidando para ir junto, mas Hulda declinava. D. Mirtes jamais deixaria a filha viajar com o colega.

Como Drummond escrevera, "no meio do caminho tinha uma pedra..." No de Hulda, a gravidez de uma garota com quem Léo brincara carnaval. Não só dançara. "Dançara". Assumindo tudo, veio falar com ela, cabisbaixo. "Tenho algo para te contar, não sei como dizer..."

E ela, numa intuição:

- A moça está grávida...

Na verdade, não sabia de nada, exceto que Léo fora para Ouro Preto com uma turma de sua rua e lá, havia ficado com a tal da Telma. Ele mesmo contara tudo a Hulda pois ela sempre fora sua confidente. Disfarçando a mágoa, ela o ouviu até o fim do "confiteor" e dissera:

- Isso acontece... Para mim, o importante é que você não fique mais com ela... mas também não vou querer que você passe outro carnaval longe de mim... E se fosse o contrário?... Coloque-se no meu lugar, Léo...

Ele mostrou-se arrependido. Chegou a pedir que o perdoasse. Logo depois, começaram a transar. Até que, após três meses, essa dolorosa revelação.

Telma era "de menor". Era preciso casar-se. A criança não tinha culpa. Ele, o pai, devia assumir. E blá-blá-blá. Todos os chavões ouvidos através da fieira dos anos, referentes a conhecidos e desconhecidos, agora à pessoa com quem estava comprometida.

- Considere-se livre, Léo. Por mim, você está liberado do nosso compromisso. Com licença...

Entrou depressa, deixando-o perplexo e perdido, na varandinha de azulejos azuis e samambaias. O rapaz quis chamá-la, mas faltou-lhe coragem. Correu para o portão de ferro em arabescos de jardim, abriu o ferrolho e saiu para o denso domingo já quase no meio. O coração há muito galopava no peito.

Hulda não teve mais notícias dele, que não voltou às aulas. Tempos depois, a moça soube que ele fora estagiar na Itália, a mando da Fiat, onde havia passado a trabalhar. Era à noite, que, antes de dormir, pegava a miniatura na qual ele trabalhara pacientemente, com pedacinhos de folha-de-ouro em pequeníssimos detalhes, tendo criado, para ela, aquela cena maravilhosa, tridimensional, usando todos os recursos de imaginação e do talento - ele que gostava de pintar a espátula, telas imensas, ampliara consideravelmente seu limiar de paciência - para presenteá-la, no aniversário. Por saber que ela amava o Oriente não conhecido, suposto e entressonhado. Virando nas mãos a delicadíssima peça, em moldura entalhada pelo próprio artista e transformada em ouro, Hulda sentia um frêmito no coração, como o bater das asas de um passarinho. Sentia saudades, mas estava magoada e afastava da mente as lembranças. Mãos carinhosas fazendo-lhe uma trança no meio da cabeça. A língua morna lambendo de seu queixo o molho do cachorro-quente. A manta xadrez azul sendo colocada sobre seu copo semiadormecido, quando, gripada, deitara-se no divã do ateliê de Léo. E a gloriosa primeira vez, algo assim como um deslizar de cisne num pântano. Frêmito, obstáculo, passagem, voo. Liberdade.

Anos mais tarde, casou-se e viveu prosaicamente. O marido administrava lojas, dois filhos dóceis que não lhes traziam problemas, vida financeira aparentemente tranquila. Aparentemente: nada faltava à família e o marido, do tipo provedor pleno, não gostava de sobrecarregá-la com seus problemas comerciais. "Basta você administrar a casa e as crianças, meu bem. Já é trabalho demais"

O talento para a pintura, minimizado, colocado em compartimento estanque de seu cotidiano, uma sobra canalizada para as artes domésticas. Os lençoizinhos e fronhas dos filhos, os bichos nas almofadas, panos de prato cheios de cenas. Ninguém notava a perfeita colocação da sombra e da luz, a proporção das frutas, a carnação dos cozinheiros, o brilho nos olhos das camponesas. "Ah, que toalha linda! Me empresta o risco?" Não tinha, desenhava sem cópia. E lá se ia a amiga, com a peça, a ser copiada / deformada embaixo do papel de seda, cujo repassar de traços e a reprodução ingrata davam-lhe vontade de rir...

Hulda não lamentava esse afastamento das Artes. Estas tinham sabor de Léo. Sabor de mel e de fel, pensava. A vida, agora era outra. Viúva, voltou para Belo horizonte onde moravam os filhos - ele médico, ela Relações Públicas - R.P. - de uma firma de publicidade, casados e preocupados com sua saúde. Veio, mas quis morar sozinha, num apartamento funcional. Havia uma empregada, por insistência de Jairo, o filho: ela não pode ficar sozinha. No fundo, achava graça. Embora o espelho lhe devolvesse uma imagem de sessentona, sentia-se jovem. Claro, havia a cardiopatia, mas como sua vida transcorria sem excessos, por que preocupar-se? Os cabelos estavam raiados de branco de prata, um dos brancos aprendidos em pintura. Encantavam-na. Rugas, as de expressão, nenhuma papada nem barriga. Ah, uns pêlos sob o queixo, que arrancava com pinça, impressionada com a grossura. Branco de zinco, outra cor de tinta a óleo.

Criando coragem, voltou a atravessar a rua. A mão direita ajeitou os cabelos, a esquerda alisou a saia. Entrou e chamou a vendedora. "- Desculpe, mas é que sou pintora e creio conhecer aquela miniatura. Por favor, chame o proprietário, sim?".

Antes mesmo que a moça se movesse ou respondesse, a voz troou:

- E então, trouxe a toalhinha, Hulda?

Era seu antigo professor, Marco Antonio. Os demais caíram na risada, ela perplexa:

- Mas como sabia que era eu?

- Ora, do mezzanino, observo os clientes. Vi você pela vitrine. Depois entrou e saiu. Fui à janela e lá estava você, sentada em frente. Eu já ia lá, quando entrou!

Saíram para o sol, rindo e trocando miúdos. Sentia-se a Hulda moça, a Hulda pintora. Um sopro da vida antiga misturou-se às possibilidades de uma vida nova. Ele tivera um enfarte, mas estava bem. Não se casara. Léo? Deixara-lhe a miniatura com um pedido: "Um dia Hulda passa e reconhece". Dito e feito. Mas, e Léo? Não sabia, viajava muito, inquieto. Enviuvara há tempos, também. Tinha uma filha, pintora como eles. "- Vamos, vou te mostrar, na galeria que fica nos fundos, os quadros dela. É expressionista, muito talentosa. E ela é doida para te conhecer, Hulda, sempre diz ao pai que quer ver de perto a única mulher que ele sempre amou.

De braços com o velho amigo, sentiu-se, afinal, inteira, resgatada. Quem fôra, quem estava sendo. Devolvida a si mesma, apressou o passo em direção à loja de artes e antiguidades. Há muito tempo não se sentia assim feliz...

(4 e 5 de maio)

  • Publicado em: 14/08/2003
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