Sob com lençol morno do calor do corpo, a mulher ondeia. A mão
que lhe segura o pé direito faz círculos com o polegar. Ela se
arrepia. Ele sabe que os pés sempre foram seu segredo. Desde a primeira
vez, haviam criado, reinventado anos a fio, mil modos de se acarinharem com
os artelhos. E os pés se tornaram muito eróticos.
Quando ia dormir, ambos os perfumavam. Ele com seus perfumes secos, amadeirados.
Ela com seus odores doces, cítricos . Ficavam um bom tempo cheirando
os pés um do outro. Os dele, tinham dedos gordos e roliços. Os
dela, longos. Com os quais aprendera a tocar notas no dorso dos dele, ou nas
pernas... e ele brincava de adivinhar que musiquinha a esposa tocava. Os dele
faziam-lhe um shiatsu particular, delicioso, curativo ou reparador...
Grávida, descansava os quadris numa espécie de rede, formada pelos
pés dele, cruzados. Se andavam zangados, bastava que um se oferecesse
para fazer a pedicure do outro, que a raiva se ia, com risos e gemidos.
Sempre que pegavam uma gripe do outro, partilhavam um escalda-pés cheio
de ervas, sal grosso. Um se baixava e massageava os pés de seu querido...
E então, o mal estar sequer era mais percebido.
Após as caminhadas, era um ritual tirarem os pés do tênis,
as meias dos pés, suados e retirarem os excessos de energia na velha
banheira do apartamento.
Colocar os artelhos gorduchos dele na boca e lambê-los, após o
banho, um prazer ilimitado.
Seu fetiche não eram sapatos, mas ainda assim, gostavam muito de se presentear
com modelos diferentes, confortáveis para ele, sexy para ela. Limpavam,
engraxavam, desodorizavam dos suores os interiores, perfumavam com seus próprios
aromas.
Um amigo trouxe, para ela, meias soquetes com cheiro de melissa. Ela descobriu
num freeshop, mais uns pares para ele, com sabor de hortelã... E deixar
o marido na curtição de fazer escorregar, quadris e pernas abaixo
suas meias-calças, até que chegassem aos pezinhos rosados, um
prazer tão bom de lembrar, que se ele não estava perto e ela pensava
nas sensações deliciosas, ligava para o celular do companheiro
e os dois saiam correndo para casa. Ainda bem que eram autônomos, ela
arquiteta e ele advogado. Davam desculpas, claro. E chegavam em casa quase juntos,
ou se encontravam em um motel para matar o desejo.
Metiam muito os pés pelas mãos, claro. E o resultado era saboroso.
Possuíam centenas de fotos, ao longo dos anos, de seus próprios
pés, nus e vestidos. Acabaram experts, fizeram algumas exposições,
grandes posters em preto e branco, com os pés sob vários ângulos,
separados, juntos, com os do filho entre eles, ou pousando em suas mãos
e os conhecidos os consultavam sobre pedologia, sapatos, sandálias e
chinelos. Ah, os chinelos caseiros, lindos, aos montes, de todos os tipos. No
inverno, usavam pantufas, que usavam para inventar histórias para o rebento.
Esse, claro, tinha o primeiro sapatinho banhado a prata num lugar de honra.
Recém nato, encantou os pais com a finura de sua pele rosada. Pétalas
de rosa, ela comparava.
Certa vez apresentaram-se na escolinha do filho, numa festa de pais, com as
mãos vestidas em sapatos e meias, uma pantomima, na qual ficavam ocultos
por trás de um tabique falando uns esquetes bem humorados. E enquanto
falavam, acariciavam-se com os pés descalços.
Uma vez, o garoto adoeceu dos rins e a mãe fez uma promessa: entrar,
toda a família, descalça, na matriz, para assistirem à
Missa, caso ele sarasse. Sarou. O garotinho protestou e chorou de vergonha,
mas cumpriram o prometido. Ao voltar para casa, dividiram alegremente uma pequena
piscina, onde um ficou brincando com os pés do outro. Quando os enxugaram,
com toalhas brancas e macias, a mãe pegou caneta hidrocor e desenhou
carinhas nas almofadas de todos os artelhos. Passaram uma tarde se divertindo
com os enredos inventados. Talvez a criança se tornasse um escritor,
tanto o imaginário era estimulado, perpassando pela grande aventura de
ter pés. Ele também já cultivava os seus, escolhendo com
cuidado meias e sapatinhos: "Combina, mamãe?"
Eram ótimos pais. Entre si, amorosos sem par. Mas com muitos pares de
calçantes... Tênis rima com pênis, ela brincava. E não
raro ele usou um dos halux como seu órgão sexual.
Num Ano Novo, após o reveillon festivo, ele levou para o quarto uma grande
terrina de cristal azul e uma garrafa de champagne que sobrara quase cheia,
após as muitas abertas para os amigos... Derramou na peça a bebida
e nela deitou uvas moscatel. Para cada uma que a mulher agarrasse com os dedinhos
enfeitados de esmalte cor de vinho, um presente. Comprara-os durante uma semana;
toda a sorte de meias e, por último, uma pulseira de prata cheia de berloques:
pés, botas, sapatos, sandálias de salto...
Ela, por sua vez, entregou-lhe uma grande bota de couro de cabra, onde acomodara
vários pacotinhos...
É essa mulher que ronrona sob o lençol, esticando o arco dos pés.
A dança dos vinte dedos, perfeitamente realizada. Geme baixinho, quando
ele coloca seu halux na boca e passa-lhe a língua devagar, em espirais.
Está sonhando, depois de dias sem dormir. Sente um frisson tão
forte, que acorda. E então, começa a chorar. É sua primeira
semana de viuvez. Seus pés estão absolutamente solitários
e tristes...