A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Tarde de domingo, primavera no litoral sul do Brasil. Dezenas de atletas se aglomeram ao redor de seus técnicos e segundos. Ao centro do ginásio, um ringue, quatro cantos, vermelho, branco, azul e branco. Luz solar brilhando lá fora e luto nas camisetas. Anos antes, mataram um pugilista, negro, esguio e ágil como tantos outros; brilhante, com garra e técnica como poucos. Mataram um pugilista, e poderia ser seu filho.

Sombra e luva na dor da mãe

(Bruno Lima Rocha)

Na entrada do ginásio, claro e iluminado, havia uma penumbra, pairava algo de gris na tarde desportiva. Nada escapava desse clima, ao menos, nada que este aqui percebesse. Todos os momentos refletiam essa angústia; na hora deu vontade de escrever, mas era impossível. Tinha guris para cuidar, lutas a cumprir e como a gente sabe, em dia de evento do boxe olímpico, as horas nunca passam.
"Se troquem e comecem a aquecer! O fulano é a segunda luta e o beltrano entra na sexta!" Todos de azul e começa o baile, dá-lhe movimentação; tem de acelerar o batimento. Logo no começo, fomos meia-boca, não levamos. Era a hora da virada. Aumenta a tensão.
Ao fundo da quadra, atrás da tabela do placar, dois atletas se aqueciam. Sombrinha batendo luva no reflexo. A equipe vinha de derrota na primeira luta; no quadrilátero, o juvenil que joga no meio médio ligeiro ficou sem gás e mal se agüentou até o final do terceiro assalto. Os demais boxeadores ficam ainda mais ansiosos, o medo de perder gela os olhos dos galos. Criados na vila, eles logo aprenderam a temer pouco ou nada. O problema é esse, naquele lugar, o medo se esconde atrás de punhos de aço. Bate luva, e reflexo, e por vezes o aquecimento parece luta, a coisa esquenta, até que ela - a mãe do pugilista que mataram - passa por ali.
Um par de luvas azuis, da fábrica àquela que fica no Vale dos Sinos. Bah, PU com 8 onças, lá onde bate dói, e dói mesmo. Fazer o que? É o par de luvas mais barato e equipe pequena, na forma de projeto social, tem de se virar como pode. Luva de PU, 8 onças, é o bastantão dos treinos.

Quem bate e sofre com dor e a reação, sabe o que passa antes de subir. O meu pesado estava meio ansioso; meio não, muito ansioso. Com o psicológico meio complicado (meio não, muito complicado), somado com a adrenalina da última sombra antes do combate, o "guri" de 90 kgs e 1,91 de altura soltava os braços com vontade; veloz demais, por vezes atingia a maçã do rosto do meio-pesado, seu parceiro de treinos e luvas.

A cena, eu suponho, deve ter mexido com a memória da mãe do campeão que o Estado em armas matou. Ou foi o porco, ou foi apenas rixa. Importa pouco ou nada agora, porque ele não foi para as Olimpíadas, não disputou o ouro no médio (e ganharia, ah ganharia) e agora sua presença é na memória de quem a cultiva. Quando a cultiva. Inesquecível dizem todos que com ele treinaram, as testemunhas de tardes de domingo como àquela, quando o guri se transformava em três homens e como um furacão rompante, atravessava as guardas como quem cruza ruas sem movimento de tráfego.

O piá é inesquecível para os companheiros de esporte, e antes de nada para sua mãe, certo que sim, mãe não esquece, nunca. Tanto não se esquece como se lembra, ela pode tê-lo visto naquele momento, os olhos quase lacrimejando, pálpebras pesadas, sua face negra refletiu o pesar e a dor ao ter os olhos ofuscados pelo sol de primavera do litoral norte e lagunar do Brasil mais ao sul.

Por menos de um minuto, e 40 segundos é muito tempo em luta, as luvas pararam de bater e fez-se silêncio. Me calei - porque como todo técnico, a gente fala o tempo todo e grita na maioria das vezes -, os guris olharam para o chão e a mãe passou. As escadas pesavam, cada degrau era uma eternidade, com os cantos dos olhos ela mirava aos dois em uniforme azul, mãe sabe e nunca esquece. Como pesa ser mãe de mártir! Como pesa ser observado por uma mãe de mártir, de um ex-futuro campeão olímpico!

Vale como máxima. Os filhos devem enterrar os pais, e não ao contrário. Na camiseta branca da mãe negra, o retrato do guri. Sorrindo, em guarda, esperança na ponta das luvas. Se estivesse vivo, ah se estivesse vivo, Esquiva, Yamaguchi e Adriana teriam companhia naquele pódio londrino. Agora, resta a memória e a dor. Uma mãe não deve enterrar seu filho, a mãe de um boxeador deve temer as lesões nos treinos e no ringue, nunca na rua.

Atleta não arruma encrenca, sai de casa para o treino, estuda, trabalha ou treina de novo, e depois dorme. Não faz nada, vive como um espartano. Sua preparação guerreira se faz batendo bolsa, teto-solo, pêra e manopla. No máximo, um pugilista xinga, fala palavrão, e baixo, porque os velhos estão sempre de olho e a bronca é universal, pega todo mundo, treinador, segundo, colega de treino, torcida, atleta, menos pai e mãe. Menos ainda pai e mãe de mártir da causa dos tortos. Sim, porque como diz um ícone gaúcho desta estranha religião do corpo, quem boxeia é torto, ou porque quer se vingar da sociedade, ou porque quer consertá-la. Dessa vez não, já não tinha muito conserto.

O pai também olha triste, mas sério. Homem não chora; menos ainda num torneio de boxe olímpico que leva o nome de seu filho. Passei pelo homem que ajudou a pôr o mártir no mundo dos vivos lá no corredor debaixo da arquibancada e gelei. "Nossa, isso parece a letra de Hurricane, de Bob Dylan."

...he could have been the champion of the world! E podia mesmo, pódio olímpico ou mais!

Olhava os pais do guri e pensei: "Como será que dorme o homem que matou o guri na covardia?" Será que dorme, será que consegue dormir? De repente, num instante, breve, muito breve, imaginei a cena como revanche imaginária. Na vingança da vida, o assassino dorme de barriga para cima, porque deve estar obeso e a mulher já não lhe dá nada, nem atenção e menos ainda o corpo. De algum lugar, do além ou da eternidade, a fera da seleção brasileira o mira com desprezo. Lá de cima, o piá que era craque nas luvas deve alterar um treinamento intercalado cruzado com longas sessões de corrida com sombra. No meio do treino, pára e aponta o nariz para o porco. Ri de nojo e volta a treinar. Boxeador olímpico não arruma tumulto, nunca, jamais, nem da paz eterna onde um pugilista nunca descansa.

Delirando de raiva, deixei de lado o treino dos meus guris e pensei na cena, novamente a imagem da mãe e do pai enterrando aquele guri que amedrontava meio mundo. Choravam de soluçar, uma mãe e um pai não deveriam enterrar seus filhos, é contra a ordem natural das coisas. Pensei no episódio e lembrei-me de um velho amigo, revoltado e ateu contra os destinos inesperados. Este veterano gritava quando uma pessoa jovem morria: "queria que Deus existisse, ao menos por uma vez, assim eu poderia xingá-lo, mandar esse cara à merda, gritando a farsa que ele é!"

26 de novembro de 2012
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