A Garganta da Serpente

La Fontaine

Jean de La Fontaine
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O lobo e os pastores

(La Fontaine)

Cheio de humanidade,
Certo lobo (se é que há lobos tais neste mundo)
Um dia refletiu sobre sua crueldade
De modo mais profundo,
Embora fosse cruel só por necessidade,
- Todos me odeiam - diz - vê no lobo cada um
O inimigo comum:
Cães, aldeões, caçadores,
Todos se juntam a fazer-lhe uma guerra
Júpiter, no alto, está tonto com seus clamores;
De lobos por isso é tão deserta a Inglaterra:
Nossa cabeça a prêmio lá foi posta.
O mais humilde fidalgote gosta
De iguais decretos contra nós baixar.
Mal um fedelho o choro principia
E logo a mãe com o lobo o passa a ameaçar
Tudo por causa, só, de um cão rabugento
Que eu de parte deixar preferiria.
Pois nada mais que vida haja tido comamos!
Pastemos brotos, relva e de fome morramos!
Será tal sorte, acaso, pior mal
Do que atrair o ódio universal?
Isto dizendo, viu pastores que, num prado,
Estavam a jantar um cordeirinho assado
Ao espeto. Oh - diz ele - penitente,
Eu me confesso réu do sangue dessa gente,
E eis que seus guardiões
A devoram, pastores e seus cães;
Por que eu, lobo, terei remorsos e vergonha?
Não, pelos deuses, não! De mim não vão zombar!
O cordeirinho eu hei de mastigar
Sem que no espeto ponha;
Ele, a mãe em que mama, o pai e seus parentes
Jamais serão poupados por meus dentes!
Estava certo o lobo. Então nós, que fazemos
Opíparos festins comendo animais,
Motivo para reduzi-lo temos
A manjares somente celestiais?
Não tem ele também de encher o seu surrão?
Pastores, só está o lobo sem razão
Quando um mais forte dela o priva:
Quereis que como anacoreta viva?

(fonte: "Fábulas de La Fontaine".
Rio de Janeiro: Editora Brasil-América - EBAL - SA, 1985)

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