Há quase quatro anos, fui convidado (com mais dois moradores) para participar
da elaboração do novo texto do regulamento (convenção)
do nosso condomínio, para registra-lo e ganharmos um número no
CNPJ. Parecia uma tarefa simples: pegar um texto num prédio próximo,
juntar com o nosso antigo texto e apresentar o óbvio aos moradores para
aprovação geral. Num primeiro momento imaginei que na Assembléia
Constituinte antes de 1990, tal procedimento teria ocorrido. Esperávamos
leis bem elaboradas, tal o grande número de personalidades reunidas.
Até membros da ABL existiam neste grupo. Deu no que deu. Até "ponto-e-vírgula"
prejudica o necessitado (pobre) no momento de interpretar o texto a seu favor.
Fizemos o trabalho de editar a espinha dorsal do referido texto. Nos reunimos
a cada dois meses para (de vez em quando apareciam dois ou três convidados
para palpitar) efetuar os ajustes, no intuito de evitar dupla interpretação
das normas. Não pretendíamos incorrer nos mesmos erros das leis
que regem a nação. Apesar de não termos a mesma disciplina
das forças armadas (é o que está faltando entre os defensores
da libertinagem que rotulam de "democracia" o estado de desrespeito
às normas começando pelos que deveriam dar o exemplo mas usam
das imunidades "para lamentares" - perdoe o trocadilho - para burlarem
as leis em proveito próprio) pretendíamos definir regras fáceis
de serem seguidas por todos.
Mas começamos a perceber que cada item mais rígido no sentido
de permitir uma convivência equilibrada e respeitosa entre nós,
era alterado para conceder abertura de interesses das pessoas que se acham mais
espertas que a esperteza e não queriam ser punidas pelas suas atitudes
menos ortodoxas. E aqueles que aplaudiam e prometiam comprometer-se com o texto
em elaboração eram os primeiros a transgredi-los, explicando que
a situação do momento justificava a burla. Então propus
que para não gastarmos tempo e papel inutilmente (pelo visto tudo seria
burlado desde que se apresentasse uma "explicação comovente"),
nosso regulamento tivesse apenas uma norma: "fica proibida qualquer ação
danosa ao prédio ou aos seus moradores, exceto nos casos em que o praticante
tenha uma justificativa plausível para não ter se portado de maneira
adequada".
Não aceitaram. Abandonei o projeto. Se for para não cumprir, qualquer
texto serve. O registro é mera formalidade para atender a uma exigência
do banco para aceitar a conta do condomínio. O resto é hipocrisia.
Juntando este espírito reinante nos condomínios da pátria
(o nosso não é o único vilão da história),
percebemos porque as leis nacionais são amenas para os grandes facínoras
(normalmente a turma dos gabinetes dos governos e das empresas patrocinadoras
de campanhas eleitorais) e rígida para os pobres de pele não dourada
pelo verão. Estes, por falta de permanência nas escolas e oportunidade
de leitura regular, não sabem descrever uma "explicação
comovente".
E o pior é que este clima se instala na sociedade lentamente, de forma
indolor. De repente nos surpreendemos em não desligarmos a tv quando
surgem notícias de chacinas em plena hora do jantar. Não tiramos
as crianças da sala no momento em que as novelas ultrapassam os limites
da ousadia e exibem cenas que derrubam em minutos, valores que levamos anos
para implantar nas cabeças confusas dos jovens. Daí já
considerarmos "normal" quando na página policial surge um fato
relativo ao jovem que matou a avó com pauladas para obter grana para
adquirir as malditas drogas que estão destruindo a sociedade sob o olhar
complacente das próprias vítimas que se recusam a reagir de forma
dura como a situação exige. Mal comparando, quando uma pessoa
está se afogando, pode precisar levar um tapa forte para que tenhamos
meios de salvá-la.