De tempos em tempos, num ciclo periódico, há quase 100 anos em
movimento, ocorrem fatos que incomodam e chocam a sociedade. São os mesmos
fatos, nas mesmas cidades, nos mesmos bairros. As vítimas fazem passeatas,
levam faixas, prometem se vingar nas próximas eleições
e buscam apoio em algumas entidades que na verdade só possuem rótulo
de ONG para fazerem jus a alguma verba que lhes é destinada. A maioria
não pretende resolver o problema de vez, pois os recursos cessarão
neste caso. Os dirigentes (Prefeitos, Governadores e Presidentes), ao longo
do ciclo, se revezam nas aparições indignadas na imprensa, prometendo
providências urgentes e punição dos culpados. Mas algum
fato ameno (fortuito ou fabricado) ocorre logo a seguir e a população
sofrida e anestesiada se aquieta, até que novo abalo social aconteça.
Ilustremos esta situação para comprovar esta teoria.
As chuvas de verão ocorrem e diversos pontos das cidades são afetados.
Várias famílias perdem bens e entes. A autoridade aparece, diz
que vai adotar um programa de remoção de detritos que entopem
velhas galerias, vai realizar obras para desviar e tratar águas poluídas,
desentupir sistemas de escoamento e vai adotar um programa escolar onde dará
ênfase à educação do cidadão, para que este
aprenda a preservar seu ambiente, sem suja-lo além do tolerável.
Mas as chuvas cessam, chega o Carnaval, o povo passa a discutir o samba e as
fantasias da sua escola preferida e acusar os jurados pela nota 9,5 que ela
tirou num determinado quesito. E o governante não é mais cobrado
até o próximo verão, quando possivelmente um novo administrador
dirá que a culpa é do anterior, que desviou verbas destinadas
à solução daquele problema.
Alguns idosos morrem nas filas dos postos de saúde em todo o país
ou numa clínica de purificação de sangue. Isto já
é considerado normal, se forem até uns 5 por dia. Mas se um dia
falecem além de 10 e entre eles está um antigo artista ou jogador
de futebol, a imprensa estampa a ira dos sofredores. Logo vem o administrador
dizer que vai rever o sistema de saúde, melhorando os salários
dos funcionários, fazendo reposição de pessoal, abrindo
postos nos bairros que funcionarão 24 horas por dia, prendendo quem falsificou
remédio, fechando laboratórios que sonegaram impostos e incluindo
matéria nas escolas onde os cuidados com a higiene estejam em evidência.
Tudo isto será possível com o CPMF que pagamos (mas que misteriosamente
evapora dos cofres públicos). Mas na semana seguinte, acontece o último
capítulo da novela que demora mais de 11 meses vendendo cd musical. A
galera passa a discutir este tema por uma quinzena e a estatística retorna
às 10 mortes previsíveis de idosos em filas. Somente numa próxima
ocorrência, haverá nova indignação popular.
Diariamente morrem de forma violenta, dezenas de pessoas nas comunidades carentes,
pelos mais diversos motivos (fúteis ou não). Mas quando isto ocorre
numa zona privilegiada ou na porta de alguma tv que exibe o fato sob forma de
seriado, o povo reclama providências através das alvas passeatas
silenciosas na beira das praias (quando deveriam ser barulhentas, na frente
dos palácios). Eis que surge a autoridade, afirmando que vai apurar e
punir os culpados diretos pelo fato (os causadores da situação,
que usam terno e ficam em salas atapetadas e refrigeradas, não são
incomodados). Promete demissões, melhores salários e equipamentos
para a polícia, nova estrutura de segurança, desarmamento da população
(só tomam as armas das pessoas de bem que se iludem achando que podem
defender seu patrimônio com um mero 38). Mas alguns dias depois, acontece
a final do campeonato de futebol local, e as atenções se desviam
para o "matador" que dá um "tiro" em direção
à baliza do adversário. Durante 15 dias se comenta a falha do
goleiro ou a má decisão do juiz em não expulsar um jogador
violento. E somente no próximo ato de terror na zona nobre, vai sacudir
as entidades "indignadas", que cobrarão uma postura firme do
político que está no comando no momento. Enquanto isto, as chacinas
nas zonas pobres continuam sem alarde nos periódicos da cidade.
Se o povo não desperta da anestesia em que está mergulhado e não
exercita sua memória para descobrir quantas vezes já foi enganado,
este ciclo deve se manter por mais 100 ou 200 anos. E o pior disto, é
que com nossa prática predatória da cultura, da memória
técnica e da qualidade de nossas vidas, matamos nossa esperança
em recuperar a dignidade perdida (e vendida) pelos traidores a quem confiamos
nossos destinos. Além do mais, nossos filhos e netos, nascerão
dentro de uma realidade onde a verdade se exibe acorrentada e amordaçada,
disfarçada pelas migalhas oferecidas pelos bondosos abutres que sugam
nosso sangue para suprir suas tolas mordomias imerecidas. Nossos herdeiros não
saberão perceber seus direitos a uma vida digna. Seus sonhos de igualdade
de oportunidades para todos serão rotulados de fantasias de elementos
despreparados para viver numa sociedade "justa".
Você se lembra em quem votou nas diversas esferas para conduzir seu destino
e lutar pela sua qualidade de vida? Está acompanhando o trabalho deste
elemento para verificar se ele tenta realizar o que prometeu em campanha? não
se importa com as atitudes dele que dificultam a busca por uma vida melhor?
Acha natural que tal elemento venda seu prestígio para grupos devastadores
de nosso rico patrimônio? Está pensando que nossa próxima
geração poderá salvar este país mesmo com sua
inadmissível omissão atual? Ou imagina que sua responsabilidade
cessa a partir do momento que através do voto concedeu um mandato para
um pilantra se locupletar com o dinheiro de nossos impostos?