A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A tirania saudável

(Haroldo P. Barboza)


Imagine a seguinte situação: a dona de casa passa o dia arrumando o lar. Sai o marido para o trabalho e os filhos para a escola e ela mergulha na árdua tarefa de consertar os estragos provocados pelo "furacão" da presença de seus entes queridos. O caos vai desde a manteiga escorrida na toalha da mesa da cozinha, passando pelos chinelos abandonados no banheiro, pelo jornal desfolhado na sala e culmina nos objetos perdidos sob as camas dos quartos. Aí está o núcleo do caos. Ela tem até receio de atravessar a porta dos quartos dos filhos e ser acidentada por algum objeto pontudo pronto para despencar da estante. Desde uma leve luva de goleiro (ainda que suja de lama), até uma velha impressora do computador que qualquer dia o herdeiro vai desmontar o artefato para aproveitar algumas peças ainda em bom estado. Fora a estafante tarefa de procurar a conta de telefone que pode estar até debaixo da cama ou atrás do vaso de plantas. Se o cão de estimação ainda não tiver estraçalhado o papel para afiar os dentes. E ninguém avisou que o tubo de pasta de dentes terminou. Esta desorganização ajuda bastante na montagem de um estado de depressão desta heroína, tendo em vista que pouco tempo sobra para esta mulher cuidar de si mesma, desenvolvendo atividades que preservem sua estampa, enriqueçam sua mente e alimentem seu espírito.

Um belo dia ela resolve organizar este ambiente. Cansada de ser a escrava dos insensíveis amados, agraciada apenas com o título de "rainha do lar", define lugares exatos para objetos sejam guardados após o uso e distribui tarefas aos habitantes deste lar bagunçado. A cada momento que um deles pratica um desleixo, ela o lembra de pendurar a toalha de banho, guardar a roupa suja no cesto antes de sair, amarrar o saco de lixo, engraxar os sapatos e outras pequenas tarefas "mortais" aos preguiçosos masculinos. Também elaborou uma tabela do uso da televisão. E mesmo tendo ficado com apenas 2 diárias horas para si, ouviu murmúrios de desagrado dos desleixados. Os acomodados, que até então se realizavam com a mordomia integral de não contribuir para a harmonia do ambiente, suprimindo algumas energias esportivas a favor do social familiar, se revoltam, alegando cerceamento de liberdade e prática de tirania por parte daquela que antes era uma mulher perfeita (pois tudo fazia graciosamente sem reclamar).

Da mesma forma que esta curta fábula (que infelizmente é uma realidade em alta escala dentro de nossa sociedade), nossa pátria também está repleta de gente que se esconde atrás da bandeira da liberdade para poder ficar à vontade executando as proezas que satisfazem apenas aos seus interesses em detrimento dos demais habitantes do espaço, cujos interesses são pisoteados sem cerimônia. Qualquer tentativa que se proponha para definir uma conduta dentro das normas estabelecidas por leis para buscar o equilíbrio da convivência, provocam algumas vozes apoiadas na imprensa amarrada para reclamar seus "direitos" (de desrespeita-los). Começam a pronunciar belos discursos enaltecendo a democracia e rotulando os defensores dos valores morais e disciplinadores de "tiranos". Efetivamente, até bosta em verso pode ser considerada bela (qualquer agência publicitária de qualidade média monta uma propaganda capaz de induzir os desatentos a comprarem tal produto). Como o "nu artístico" praticado num palco de teatro (vai ver quem quer - diferente da tv que invade lares de surpresa e encontram crianças desprotegidas). Discursos floridos sobre ditaduras que não deram certo e onde tiranos executaram opositores sem julgamento adequado certamente reforçam a tese de que tal modelo de governo ocasiona prejuízos consideráveis à sociedade. Mas um purgante faz-se necessário quando o intestino não funciona corretamente e ficamos sem evacuar por 4 dias seguidos.

No entanto, provavelmente os parias não contabilizam as perdas humanas e materiais, provocadas pelos sistemas democráticos, onde os legisladores redigem mal (propositalmente e por despreparo), os executivos se aproveitam para tirar vantagens em proveito próprio, os juristas silenciam (por cumplicidade e acomodação) e as entidades representativas dos segmentos da sociedade não protestam (por contaminação).

Mesmo sem dados contabilizados, temos o sentimento de diversos prejuízos que sofremos com o sistema de "liberdade" ora em vigor em nosso universo. Ilustremos alguns.

Enquanto bancos e laboratórios conseguem lucros de 60% num ano, os salários dos trabalhadores são reajustados em média, 8%. É a liberdade financeira (somente a favor dos tubarões).

Enquanto o povo não consegue financiamento honesto para adquirir moradia digna (tendo de inchar as favelas) nem para montar seus pequenos negócios, estão loteando o Amazonas e as áreas petrolíferas entre abutres estrangeiros. É a liberdade de doação de nosso patrimônio natural.

Enquanto o povo se acotovela (os que ainda podem pagar passagens) nos trens sucateados, foi liberada verba para aquisição de luxuoso avião de 180 milhões de Reais para mandarem o Presidente ao exterior perdoar dívida do Gabão e intermediar jogo de futebol no Haiti. É a liberdade de locomoção.

Promoveram uma campanha demagógica de comprar armas velhas de cidadãos pacíficos, projetando recolher 100.000 artefatos em 9 meses, enquanto 10.000 armas modernas chegam às mãos dos bandoleiros em todo Brasil em um mês. É a liberdade de defesa de nossa vida. Se bem que podemos contar com os 38 enferrujados e sem balas dos nossos policiais acuados dentro de delegacias que trancam as portas após 20 horas e não enviam viaturas para bairros perigosos. Os presídios são mantidos lotados para proporcionar licitações de quentinhas, medicamentos e outros itens que fazem com que cada preso custe ao trabalhador algo em torno de R$ 1800,00. É a liberdade dos "cidadãos".

Se um de nós serrar algum galho de uma árvore que esteja ameaçando tombar sobre nossa casa, somos acionados com altas multas pelo IBAMA. Já os fazendeiros que patrocinam as campanhas eleitorais, promovem queimadas nas grandes reservas florestais e não são intimados. É a liberdade de preservação da natureza.

Enquanto a população enfrenta filas durante a madrugada para obter senha (sem garantia de atendimento) nos postos de saúde sem remédios e com poucos heróicos profissionais, os planos de saúde definem aumentos de 80% em suas mensalidades. É a liberdade da saúde (das contas bancárias das aves de rapina).

Enquanto o trabalhador braçal recebe R$ 350,00 por mês para trabalhar 2400 horas por ano, os legisladores federais recebem R$ 16.000,00 (fora comissões, mordomias e "mensalões") para "costurarem" acordos e violarem painéis durante 800 horas anuais. É a liberdade do mercado de trabalho.

Enquanto milhares de crianças são escravizadas em fazendas e minas de carvão, professores são humilhados por ridículos salários e escolas vão desmoronando lentamente. É a liberdade de educação para todos.

Enquanto metade da população efetua uma parca (e porca) refeição diária e posa nos cartazes de arrecadação de fundos do "fome zero", as despensas do planalto estão abastecidas para alimentar mais de 200(?) pessoas durante 6 meses com iguarias de alta qualidade. É o direito primário de alimentação, restrito à casta privilegiada.

Estão tramando a criação de uma "agência reguladora" de informações para impedir que as denúncias sobre escândalos da cúpula venham a público. Somente notícias que não revelem os desmandos do poder serão liberadas pelo bem da ética(?) jornalística. É a liberdade de imprensa em toda sua plenitude.

Nossas forças armadas sofreram drásticas reduções em seus orçamentos, impedindo um soldo melhor para seus atuantes, aquisição de equipamentos mais modernos e aprimoramento de cursos de aperfeiçoamento de seus integrantes. É a liberdade do direito de termos meios de defender nossa soberania.

Enquanto o Mi(si)nistro da Justiça propõe abrandamento para penas de crimes hediondos, os cidadãos de bem, que pagam impostos, são condenados a viverem encarcerados atrás das grades de suas casas. É a liberdade de transitarmos pelas vias públicas sem temor.

Se contabilizarmos as mortes dos prejudicados pela junção de todas estas medidas dirigidas pelos ratos de gabinete, acumularemos mais vítimas diárias que qualquer regime duro de exceção. Temos centenas de situações para ilustrar os diversos modelos de "liberdade" que o regime atual nos concede. Mas os citados acima já nos bastam para termos sentimento do circo montado onde nós somos os palhaços, os acomodados que se contentam em comparecer às seções eleitorais para apertar teclas de urnas eletrônicas que correm sérios riscos de serem fraudadas por "kachers" bem remunerados pelas elites dominantes.

Arrumar um país sem dúvida é mais difícil do que organizar uma casa onde existem 4 ou 5 cabeças com pensamentos desalinhados (além dos cabelos). Tem gente demais dando palpite, empurrando as questões com a barriga para o próximo governo, criando conflitos para vender falsas soluções, fabricando novos tumultos para esquecermos os anteriores e barrando qualquer proposta de mudança de atitude, pois o caos atual lhes proporciona bons lucros (ainda que corram alguns riscos de violência por parte dos excluídos). Mas se houvesse possibilidade de juntar as forças de todas as mulheres que com fibra sustentam a moralidade em seus lares, certamente teríamos uma força aliada de poderio inquestionável. É deste espírito "tirânico" que precisamos experimentar para começarmos a perceber que seguir as regras com seriedade não significa perda de liberdade e sim, ganho de conforto e felicidade. Seria saudável trocarmos as armas de frios canos de aço pelas quentes "balas" de amor disparadas pelos corações femininos.

Se depois de dezenas de séculos o homem produziu este cenário de caos onde vegetamos, que tal experimentar um modelo conduzido por quem possui maior percepção do valor da vida?

  • Publicado em: 08/06/2006
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