Em tempos difíceis, onde a insegurança torna-se um estado quase
comum entre as pessoas, seja ela motivada pela violência, corrupção, ou toda
sorte de embuste que se apresenta de maneira tão requintada; as pessoas
começam a apresentar um comportamento inusitado, dependendo do grau de
fragilidade em que se encontre dentro desta dura realidade.
Nossa história se passa no início da década de noventa.
Naquele tempo, havia uma inflação descabida, alucinantemente
imprevisível, que solapava os rendimentos da maioria da população, uma vez
que essa maioria era assalariada...
Uma senhora vitima desta conjectura social implacável, viu-se
alarmada com toda a situação e resolveu tomar uma decisão radical em relação
as suas economias. Como não confiava em nada e em ninguém, tão pouco estava
inclinada a conceder aos bancos o voto de confiança, tão necessário em
tempos de apertos, decidiu que iria trocar seu dinheiro por dólares e iria
ela mesma ser a guardiã de seu "tesouro".
Assim, sentindo-se iluminada pela boa idéia, passou a trocar aos
poucos seu dinheiro pelos tão valiosos dólares. A cada mês, retirava da
poupança uma determinada quantia e a trocava, guardando em casa.
Assim, esta senhora, foi resgatando todo seu patrimônio, até que
nada mais restasse nos bancos.
Havia nela um sentimento de quase euforia por sentir-se segura e
agraciada pela esperteza dos que sabem se defender...
Pois muito bem, o tempo transcorreu sem que a situação de nosso
país se revertesse e a nobre senhora quase já ia se esquecendo dos episódios
que marcaram todo o processo de transferência de seu rico dinheirinho...
Estávamos no mês de maio. Dia das Mães. E, como toda família que se
preza, reuniu-se na casa da progenitora, para comemorarem data tão
representativa.
Como eram muitos, e a maioria morava fora, se organizaram e no dia
cada qual chegava com algo, já semipreparado para o almoço festivo.
Na cozinha muita animação, pois as mulheres, em alegre e
descontraída conversa iam terminando os quitutes e deliciosas guloseimas,
que enfeitariam a mesa em pouco tempo.
Crianças correndo, homens servindo aperitivos, enfim uma deliciosa
reunião familiar, marcada pela genuína amizade e pitorescos episódios
relatados enquanto trabalhavam.
De repente, quando já estavam colocando a mesa, e uma das
responsáveis pelo assado abre o forno para tirar sua obra de arte, ouve-se
um grito, mas um grito tão assustador e de uma tonalidade quase impossível
para cordas vocais normais, que de imediato todos pararam.
O que se podia ver então, era uma cena de estátuas, como naquela brincadeira
infantil, onde ao se ouvir o sinal todos param exatamente como estão...
Seguiu-se uma pausa, um silêncio quase tétrico, tal a expressão de
espanto fixada no rosto de todos os presentes...
Em seguida, a responsável pelo grito novamente se manifesta:
- Não se atrevam a ligar o forno... -, proferiu a matriarca no tom de voz
mais agudo que foi capaz de emitir.
Ao que se seguiu a resposta suave, quase inaudível de uma das
filhas...
- Mamãe...Acabei de desligar, fique tranqüila...
Mas nada parecia apaziguar a mãe, que mais agitada ainda perguntou
sem se dirigir a ninguém em particular:
O forno já foi ligado? Por quanto tempo?
Cada vez mais assustadas as filhas se entreolhavam, receando julgar
a atitude absolutamente incompreensível da mãe... E como se estivessem
esclarecendo uma criança, a filha ao lado do fogão respondeu pausadamente:
- Mamãe, vamos nos sentar que esse assado foi feito especialmente
para a senhora e está uma beleza...Dourado, gostoso e bonito...- acrescentou
ela sorrindo...
Então todos viram a mãe puxar uma cadeira, sentar-se e debruçar-se
na mesa entregando-se a um pranto sentido e cada vez mais descontrolado.
A essas alturas os homens já estavam na cozinha, as crianças
espiavam através da porta, com olhos arregalados, sem entenderem o que se
passava com a querida avó, e as filhas apenas se aproximaram, certas de que
a mãe estava sofrendo de algum mal estranho!
Foi então que, numa pausa do choro, nossa personagem principal
levanta a cabeça e grita desconsolada...
Todo o dinheiro que eu tinha, transformado em dólares...Estava
guardado dentro do fornooooooooooo!
Depois de alguns minutos, tempo suficiente para que todos os presentes
pudessem entender o que lhes havia sido comunicado, correram até o fogão e
tirando a assadeira, puxaram todas as peças do forno...
E lá estavam...as cinzas mais valiosas que todos já haviam tido o prazer de
conhecer!