Tenho, como todo o mundo, momentos inesquecíveis, aqueles que marcaram
fortemente a vida, que me fizeram mudar os rumos e palmilhar caminhos novos. São
momentos de meus antepassados que me foram contados e momentos que eu própria
vivi. Resolvi registrá-los nesta Crônica para que não se percam
no tempo. Eu os revivo e, quando eu não mais os puder narrar, certamente
outros ainda os curtirão por mim.
MINHA BISAVÓ: a criança de meu bisavô
Um dia, meu bisavô chegou em casa arrasado. Tinha pulado a cerca e engravidado
uma moça. Ela não queria o filho, resolveu abortá-lo e
lhe comunicou a decisão. Ele se desesperou, não queria essa morte
de um filho indefeso. Ao chegar em casa transtornado, relatou o fato à
esposa. Ela o tranqüilizou: "você é o pai e tem direito
a esse filho tanto quanto a mãe". Apresentou a solução:
"ela não vai abortar, vou procurá-la e convencê-la
a ter a criança e entregá-la a nós." Ele reagiu: "Mas
você vai aceitar aqui um filho só meu?" E ela, determinada:
"Se é seu é meu." Disse e fez, para espanto e emoção
de meu bisavô. A criança, uma menina, foi criada como filha que
era, na casa do pai, com amor e carinho de um pai e de uma mãe. Eu conheci
essa tia de mamãe. Já morreu há anos. Isso aconteceu há
pouco mais de um século. A nobreza e o amor surpreendente dessa grande
mulher. E essa história me marcou profundamente. Minha bisavó,
sem saber, preparando sua bisneta para a justiça e para a generosidade.
MINHA AVÓ: a heróica mãe conformada
Minha avó teve cinco filhos: duas meninas e três meninos. As meninas
nasceram com a diferença de um ano apenas. Três ou quatro anos
de intervalo e vieram em seguida os três meninos. As meninas já
grandinhas ajudaram a criá-los. Dois deles se casaram. O caçula
saiu de casa e alcançou o mundo para tentar a vida. O mais velho, antes
de nascer o segundo filho, fugiu da esposa com uma outra mulher e desapareceu,
nunca mais deu notícia. O segundo fez um casamento desastrado que durou
poucos dias, separou-se e sumiu também. O caçula dava notícias
de quando em quando até que se calou para sempre e ninguém mais
soube de seu paradeiro. Vovó ficou velhinha, sempre chorando pelos filhos.
Ficou doente, era grave seu estado. Ela morava comigo no mesmo quarto. Certo
domingo acordei com ela falando alto: "Minha Nossa Senhora, a senhora é
mãe, não me deixe morrer sem ver os meus filhos." Recorri
a rádio-amadores para tentar encontrar os filhos perdidos no mundo. Nada
conseguimos. Eles nunca deram nenhum sinal de vida. Vovó concluiu que,
se Nossa Senhora não a atendera era porque era mesmo impossível
e que certamente ela encontraria seus filhos no céu. Morreu conformada.
Dias depois, um telefonema do caçula. Contou que recebera um recado de
alguém e que viria ver a mãe. Disse-lhe que ela já partira.
Na manhã seguinte, uma carta sob a porta dizendo que não quisera
entrar já que a mãe não estava mais viva. Essa história
que testemunhei me preparou para a difícil convivência com o ser
humano quase sempre contraditório e muitas vezes mais egoísta
que amante. E me preparou, principalmente, para o sofrimento inevitável
de perder um amor para a vida, bem mais terrível do que perdê-lo
para a morte.
MINHA MÃE: a economia dos selos postais
Eu adolescente, tinha uma enorme correspondência com minhas amigas também
adolescentes. Não tínhamos nosso dinheiro e os selos que iam e
vinham ficavam caros. E a idéia surgiu em mim, uma idéia criativa
mas malandra que fazia com que os selos durassem muito mais tempo indo e vindo
em nossa correspondência quase diária. Passei a idéia às
amigas e todas me aplaudiram. Era apenas uma falcatruazinha que driblava o serviço
dos Correios. Fiquei muito orgulhosa. Quando encontrei mamãe, estava
ansiosa por lhe contar a idéia brilhante. Mamãe me ouviu calada
e atenta. Quando terminei, exaltando o sucesso da idéia, ela perguntou:
"E vocês continuam fazendo isso?" Eu: "Claro, direto, eu
e minhas amigas." Confesso que estava esperando os elogios de mamãe
que sempre me achava um gênio... Espantada, a ouvi dizer: "Mas você
não vai fazer mais. Eu não quero uma filha ladra. E prometa que
não vai ensinar isso a mais ninguém." Explicou que o que
eu fazia era roubar o Governo. Argumentei que o Governo nos roubava também.
E ouvi: "Você responde pela sua consciência, o Governo pela
dele." E a idéia brilhante foi pelos ares... A honestidade de minha
mãe me preparando para a retidão na vida.
AINDA MAMÃE: o poema mais lindo
Mamãe fazia seus poemas, escrevia-os em cadernos. Um dia eu li um que
não conhecia e exclamei: "Que poema este, mamãe! Dos que
eu conheço, é o mais lindo!" Ela me olhou com ternura e disse:
"Não, não é esse o meu mais lindo poema. O poema mais
lindo que eu fiz, minha filha, é você." Abracei-a emocionada.
E ela continuou: "Não quero que seus irmãos saibam disso,
mas essa é a verdade." E minha mãe-poeta morreu convencida
disso... sem perceber que eu não passava de uma poesia literalmente de
pé quebrado... Ela definia ali a base definitiva de minha auto-estima.
ALGUNS DE MEUS AMORES:
Vitor: Nos apaixonamos. Um amor bonito e algo conturbado. Doze anos de cultivo
quase contínuo. Algumas dores, hoje facilmente esquecidas. Muitos momentos
bonitos a lembrar. Aqui, um especial e inesquecível. Eu sempre fui muito
friorenta, sofria muito no inverno. O pior era o pé esquerdo que custava
muito para esquentar, mesmo com meias grossas de lã e muita coberta.
Meu companheiro fazia tudo para que ele esquentasse. Quase sem sucesso. Numa
noite particularmente fria, dobrou uma manta que colocou sobre meus pés
já agasalhados mas rebeldes. Em seguida, debruçou-se aos pés
da cama e os cobriu com o próprio peito. O efeito foi quase imediato.
E em todos os invernos esse ritual se repetia quando ele estava presente. Nunca
esquecerei esse carinho altruísta e a importância do calor humano
que ele representa.
Tony: O maior amor, com certeza. O rei que tem um trono em meu coração
e do qual eu digo: "como todo rei ele reina, mas não governa..."
pois ninguém conseguiria governar minha vida rebelde. Ficou comigo pouco
tempo, mas vivemos grandes e gloriosos momentos. O mais impressionante deles
relato aqui. Financeiramente nossa vida era difícil. A dele mais que
a minha. Um dia ele me disse: "Eu tenho vontade de ligar para você
o tempo todo quando não estamos juntos. Não posso, pesa no bolso.
Mas tive uma idéia. Todas as vezes que passar por um orelhão,
vou ligar sem colocar a ficha. Quando você atender dará sinal de
ocupado. Ouça aquele tum-tum-tum sabendo que sou eu do outro lado te
dizendo: te amo-te amo-te amo." E, incansavelmente, fazia isso. Economizava
as moedinhas, mas não economizava o amor. Realmente, não posso
me queixar da vida...
Menino: Eu estava sofrendo muito, cansada e desanimada. A inspiração
entrou em recesso e eu tinha até medo de não voltar a escrever.
Tudo parecia o fim. Falei com ele sobre esse temor. Ele me disse: "vai
dando um jeito nisso... sem você a poesia fica sem pai nem mãe
nem puta... fica sozinha.... muda." Sorri e chorei. A inspiração
voltou, graças ao poeta que nele habitava.