Hoje é a terceira vez que venho ao apartamento depois da morte de meus
pais, há quinze dias mais ou menos. Nas duas primeiras não tive
tempo sequer de olhar com mais atenção ao redor, preocupada que
estava em pegar documentos com urgência para procedimentos burocráticos
da ocasião. Agora também venho atrás de mais alguns, só
que vou procurá-los com calma, não tenho idéia de onde
estejam nem estou afogada na pressa de encontrá-los. Na verdade, aproveito
para saborear, no momento, ecos do passado.
À luz de um abajur (a de cima, do lustre, queimou), tomo fôlego
para embarcar nesse túnel do tempo, suportar as vertigens que me esperam
ao me deparar com lembranças e reminiscências que povoam esse espaço,
nessa hora solitária que não posso nem quero dividir com mais
ninguém.
Da sala arrumada como se esperasse visitas, um inebriante e familiar cheiro
de comida caseira sendo refogada na vizinhança quase me faz perguntar:
o que é que vai ter pro jantar? Na cozinha, o silêncio. Tampa de
fogão arriada. Tudo meticulosamente limpo como a faxineira deixou, só
um pó fino que teima em penetrar pelas frestas das janelas e em tudo
se depositar. O insistente e delicioso aroma que me invade as narinas transporta-me
às delícias culinárias de minha mãe, nosso único
ponto de identificação, mesmo assim tardio e com atritos: ela
nunca se conformou com a invasão, senão superação
de seus domínios pela filha mais afeita aos livros do que a qualquer
outra coisa, que quando se casou nada sabia dessa prática e em pouco
tempo a dominava, entregando-se de corpo e alma à culinária, fora
os outros interesses que permaneceram.
Perco-me em memórias olfativas e gustativas que logo carreiam as visuais:
o peixe frito da feira de 4ª feira, até hoje no mesmo lugar e no
mesmo dia. Os incomparáveis bifes acebolados. O pernil de porco assado
no Natal. O bacalhau da Páscoa. Sonhos polvilhados com açúcar
e canela do lanche no meio da tarde. O imbatível bobó de camarão
das festas de aniversário. Era uma cozinheira de mão cheia, daquelas
que só sabem cozinhar com fartura, embora gostasse de alardear que era
econômica porque considerava isso uma virtude e gostava de ser - ou de
se pensar, ou ainda de ser vista como - virtuosa. E só usava ingredientes
de qualidade, ficava doente quando dava explicadamente sua receita a alguém
e via esse alguém modificá-la, adulterá-la, visando um
menor gasto.
Volto pelo corredor, com todo o barulho interno contrastando com o silêncio
exterior, e no meu antigo quarto de solteira abro a escrivaninha com a fechadura
emperrada, detendo-me em papéis que há muito não são
mexidos. A poeira me faz espirrar sem parar. Um gaiato, de algum lugar, grita
saúde. Respondo amém, rindo, em meio a mais espirros. De uma grande
caixa amassada de papelão saem reclames os mais diversos, guardados não
sei pra que, os números de telefone ainda com sete algarismos. Meu convite
de formatura, um santinho de minha primeira (e quase última) comunhão,
uma tela desbotada, pintada por mim na aula de arte, uma tapeçaria não
terminada, retratos em preto e branco. Na estante, minha coleção
de Monteiro Lobato.
Empurrando com o dedo, sorrateiramente, a porta apenas encostada, sinto-me
como uma criança invadindo o quarto dos pais na sua ausência, violando
sua intimidade. Quase posso me ver menina, brincando de mulher adulta, sapatos
de salto alto, colares, batom vermelho borrado na boca infantil, bolsa maior
do que eu, de couro de cobra morta na fazenda do meu avô, uma echarpe
de plumas ainda não ecologicamente incorreta. Tudo isso está aqui,
na minha frente, quieto, mudo, mas falando tanto!... remetem a um tempo até
anterior a mim, quando só se ia ao centro - à cidade, como se
dizia - de chapéu, luvas e meias finas. E de bonde. Era chic.
No armário de mamãe, entre cabides de soutache, velhos óculos
de grau e uma pesada bola de marfim para cerzir meias, descubro um baú
cheio de cartas de amor de um para o outro. Jamais soube de sua existência,
e minhas mãos se revestem de um respeito inimaginável ao tocá-las.
Tamanho, que depois de ler o primeiro parágrafo da primeira, resolvo
fechá-la e ficar só - por enquanto - contemplando os envelopes
sobrescritados. Aqui se trata da correspondência entre duas pessoas distintas,
um homem e uma mulher, e não mais de meus pais. Recoloco com reverência
o baú, como se fosse uma urna mortuária com suas cinzas dentro,
no fundo da gaveta onde ele estava, como um tesouro escondido. Mais pra frente
virei redescobri-lo. Não se pode viajar por vários países
de uma só vez, a cabeça rodopia e você confunde tudo. Muita
informação ao mesmo tempo.
Na cômoda de papai, apetrechos masculinos displicentemente largados,
como se o dono fosse ali e já voltasse: um barbeador prateado em seu
estojo original, com nota fiscal, garantia e instruções de uso.
Um pente de osso. Uma velha câmera kodac em excelente estado. Moedas
as mais diversas num saquinho de feltro. Uma calçadeira, e uma piteira.
Dessa me lembro bem: um amigo a presenteara, recomendando que a usasse com freqüência
para reduzir a assimilação das substâncias nocivas contidas
no cigarro. E junto com elas o gosto, o prazer de fumar, brincava papai.
E o que ele fazia? Era só esse amigo chegar de surpresa (é, isso
acontecia antigamente), e ele pegar a bendita piteira e aparecer na sala como
quem não quer nada, assim, casualmente, fumando seu cigarrinho devidamente
encamisado, quer dizer, protegido. Impostura? Fraude? Não. Mentira que
dizia a verdade. Um agrado, um mimo ao amigo, que ficava superfeliz e agradecido,
crente que fizera uma boa ação. Que o presente emplacara. Que
fora de muita utilidade. E fora mesmo, só que de outro jeito, para diverti-lo.
Não, ele não queria, definitivamente, ser poupado dos estragos
do fumo. Do prazer da pulsão de morte agindo, desse gozo. Que acabara,
inclusive, conduzindo-o a um enfisema pulmonar progressivo que o faria passar,
mesmo sem mais fumar, os últimos anos de sua vida dependente de uma bala
de oxigênio permanentemente instalada à cabeceira de sua cama.
E quando ficava algum tempo sem, era horrível. A boca aberta como um
peixe fora d'água, se debatendo, tentando respirar, com a gente impotente
à sua volta.
Abrindo o emperrado gavetão inferior, no meio de tantos postais por
ele recebidos, sinto, agora, me arrepiar a pele e rodopiar a cabeça,
precisando sentar-me para ler um amarelado cartão, datado de priscas
eras, que me chega às mãos. Na frente um desenho de uma criança
com um bebê de proveta nas mãos, dentro os seguintes dizeres, com
minha letra miúda: pai, já sei realmente como se faz um filho!
É só criá-lo com o mesmo amor com que você me criou.
Feliz dia dos Pais, sua filha querida.