A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Fazendo furo no real

(Ana Guimarães)

Leio para uma velha amiga, pela primeira vez, um poema de minha autoria. Observo seu olhar atônito do início ao fim da leitura, como que a se interrogar que ser tão unheimlish (estranho e simultaneamente familiar) é esse com o qual está se deparando? Mal termino uma estrofe tenta me interromper, e assim que faço uma pausa maior começa a pedir explicações: o que quero dizer com isso, o que pensava a respeito daquilo, a partir do que associei? Não sei. Só sei que não sei. Talvez escreva para não saber. Como Neruda, não sei explicar com outras palavras, só com as que já escrevi. Pergunte a um pintor o que ele quis dizer com aquele quadro: soubesse, não pintaria. De igual forma, essa tem sido minha via de expressão inconsciente privilegiada; quem quiser que analise, critique, se delicie ou se horrorize. Claudia parece ter se divertido. Seu comentário final, às gargalhadas, resumindo o impacto sentido, foi: que loucura, chamem o Pinel!

Rendidas ao clima lúdico do reencontro rimos sem parar, feito quando crianças, descendo o elevador cheio do nosso prédio: quanto mais gente e maior o silêncio, mais vontade dava. Prendendo o riso frouxo, tento esclarecer: estou louca por desejar a publicação desses escritos? Claro que não, diz ela, assim que retoma o fôlego. Sempre disse que você devia escrever, se lembra? Porém, racionalista, não consigo entender a poesia, a metáfora, a ficção, enfim. Espero que tudo tenha uma correspondência linear, mas acabo de aprender que autor e livro, vida e obra podem ser dissonantes. Veja você, que pensava conhecer tão bem, desde priscas eras, alguém com quem almoço e janto, agora é só espanto! Choquei tanto assim?, pergunto. Que distância haverá entre a imagem que projeto e o que sou? Sou as minhas letras? Até eu me surpreendo, às vezes nem me reconheço, mas escrevo, acho, igual a todo mundo. Devaneio, brinco, e com isso mostro o que eu própria desconheço. Minto. Não mente sempre a arte? E não é quando mais mente que se revela mais criativa? (Kavátis) Por fim, recebo a sugestão de se e quando eu ficar famosa, apesar da maluquice - ou et pour cause, afinal quase todos os escritores são pirados - não me esqueça de lhe agradecer publicamente.

Sim, é verdade, ela sempre me incentivou, desde quando eu contava histórias vividas e era engraçada sem pretender (os amigos falavam), ou tinha o dom de abordar questões seríssimas com o ar de quem diz bom dia (seu mote preferido, em relação a mim). Mas outros, sem querer e sem sequer desconfiar, por diferentes motivos, encorajaram-me também. Se, como disse Deleuze: o escritor é aquele que viu e ouviu coisas grandes demais, fortes demais, irrespiráveis; do que viu e ouviu, regressa com os olhos vermelhos e os tímpanos perfurados, agradeceria principalmente às condições adversas de vida, inóspitas, quase insuportáveis em alguns momentos, que, verdadeiro motor, impulsionaram-me. A transpor limites, fronteiras, a derrubar muros, a sair da mesmice e do lugar comum. A abandonar o chão firme, navegar ou voar para a terra da invenção, lá onde a realidade não é soberana, onde nossos fantasmas de onipotência continuam a reinar absolutos, uma forma de voltar à fantasia da infância. Não é à toa que quando as circunstâncias nos são desfavoráveis e nos sentimos impotentes temos necessidade de prever o futuro, elaborar soluções mágicas, verdadeiros escapes para a aridez e a violência que nos circundam.

A linguagem (o simbólico) distingue-se por fazer furo no real, esse monolito que nos equivoca, por tentar dar um sentido, exercer algum tipo de controle. Se não tenho voz ativa, escrevo: a palavra-resistência contra a opressão. A imaginação pode ser o que nos resta, o que não nos pode ser tirado, nossa forma de reagir. Criar para fora e não para dentro, como o esquizofrênico que alucina ou delira; não como quem tudo somatiza, o neurótico, esse artista solitário cuja obra precisa ser traduzida e interpretada, bem disse Artaud. Embora não escolha o que vou escrever, sou escolhida pelas coisas que querem ser escritas: preciso transpirá-la depois, mas a inspiração - a centelha divina - vem quase sempre entre o sono e a vigília. Pensamentos que não parecem ser meus me acometem. Nem abri os olhos e aquela frase, aquele tema, aquele enredo, assim, assim, verdadeiro filme se descortina na mente, tenho logo que tomar notas das idéias ditadas pelo Outro. Contudo, tal qual o velho Guima, mantenho cadernos de anotações onde também registro o exterior: falas ouvidas, fatos, passagens, em cima do lance. Rascunhos que precedem, ou ao menos embasam, trabalhos posteriores. Guardo-os por semanas, meses, anos, acompanham-me há décadas, sempre os consulto. É um lugar - múltiplo - de criação, em movimento, em estruturação permanente. Assim como eu.

A composição literária envolve uma espécie de apagamento de lacunas, de integração (momentânea) de um todo que nunca houve, de algo que nunca existiu perdido para sempre. Pode trazer a marca do luto pela morte de alguém ou de algo, com freqüência de ambos. Mas se fico presa à perda, não posso sequer respirar, viver, que dirá escrever; é preciso certo distanciamento afetivo, e, conseqüentemente, temporal. Angústia sim, pero no mucha. Se a falta me faz criar, sempre percebo que não fui bem sucedida em minha tentativa, não consegui preencher todos os vazios, brechas permaneceram. Sabemos que o escritor as deixa para serem preenchidas por quem lê, para que as reconstrua a seu modo - esse é um dos elementos que prende o leitor, além dos famosos mecanismos de identificação e liberação de tensão -, mas acima de tudo para si mesmo, para continuar a produzir, já que resta sempre um ainda não-dito. Um texto não termina nunca, a gente põe um ponto final para dar um basta, parar de reler, de cortar, corrigir, como vou fazer agora, e jogá-lo no mundo com a pretensão de modificar, de alguma maneira, as pessoas. Afetá-las, emocioná-las. Um tantinho que seja.

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