Dentre os relacionamentos humanos é muito importante o de se relacionar
com seu eu interior, pois buscamos, inconscientemente, o sincronismo entre os
nossos diversos "eus". Tendo em vista esta sincronia é muito
importante que tenhamos alguma forma de iniciação com nossa parte
não física. Sendo assim...
Conheci em uma das minhas viagens pelo pantanal mato-grossense, um ancião
que às margens do rio Aquidauana, entre uma pescaria e outra, me narrou
um fato muito interessante e que, segundo ele, foi sua verdadeira iniciação
nos mistérios da Mãe Natureza e seus "auxiliares".
Era um ancião no qual se juntaram (para sua felicidade) - Tempo, Saúde
e Dinheiro. Ele estava ali realizando o sonho de sua vida: Viajar. Viajar conhecendo
tudo e todos sem data para continuar ou parar a viagem. Dizia ele que poderia
permanecer em um lugar: - Um dia ou cem anos. Assim, com um falar próprio
e cadenciado, iniciou sua narrativa.
***Em exatos trinta anos depois de a minha experiência, (quase por mim
esquecida e pouco levada em conta) em um setembro e em conversa com uma Ilaorixá
eu ouviu de ela: - Bem feito ou mal feito, mas feito! Aquelas palavras ficaram
martelando em minha mente, já um tanto enfraquecida em virtude de a idade.
Em o setembro seguinte um ano depois de aquela conversa, eu resolvi voltar a
o local onde tudo aconteceu e em uma Terça-feira de uma Lua crescente
lá estava eu para relembrar.
O fato que iria recordar havia acontecido entre o pingo de às seis horas
da manhã de uma Terça-feira e o pingo de às seis horas
de a noite de a Quinta-feira seguinte, há trinta e um anos atrás.
Chegando embaixo de a mesma majestosa árvore em que tudo acontecera,
uma imensa Gameleira (ficus anthelmintica), minha mente se aclarou como por
encanto. Senti-me estar em o setembro de mil novecentos e setenta e seis, em
uma Terça-feira de uma Lua crescente a o pingo das seis horas de o dia,
em companhia de o meu guia e de um seu colaborador. (ambos hoje, Eguns e de
saudosas memórias).
Lembrei também que em a Segunda-feira de a mesma semana, havíamos
ido os três, eu, meu guia e seu colaborador, procurar um local adequado
e fazer oferendas a os "auxiliares" de a Mãe Natureza de aquele
dia. Deixamos as oferendas para que os nossos caminhos fossem abertos e que
não fossemos acometidos de nenhuma doença. Depois de escolhido
o local de a iniciação por o meu guia e seu colaborador, retornamos
á casa onde estávamos.
Vi-me em a madrugada de o dia seguinte, chegando ali, em a Mata do Zumbi, em
Tiriri vindo de o sitio Caldeirão de o Diabo onde pernoitara, antes de
o raiar de o dia, acompanhando meu guia e o colaborador enquanto eles apanhavam
folhas no lusco-fusco da madrugada.
Já o dia amanhecido nós chegamos ao local onde eu, o neófito,
iria passar duas noites e três dias a o pé de a Gameleira. Meu
guia e seu colaborador começaram a preparar uma espécie de "esteira"
com folhas de muitas espécies e todas coberta com lindas folhas de Mamona
(ricinus communis). Toda a "esteira" foi rodeada com galhos de Jurema
preta (pithecolumbium tortus). Em o local já se encontrava um grande
pilão, um sabre com bainha de prata, outras plantas e frutos que eles
haviam previamente colocado sem a minha participação e que fariam
parte do ritual.
Colocaram dentro de o pilão uma porção generosa de frutos
e folhas os quais mais tarde me informaram ser de Dendezeiro (elaesis guineensis),
Saião (kalanchoe brasiliensis), Babosa (aloe vera), Noz de Obizeiro (cola
acuminata), e folhas de Capim-santo (killinga odorata).
Pilaram tudo até formar uma pasta pegajosa de cor amarelo esverdeada.
Depois de bem peneirado em uma urupemba e retirado caroços e cascas,
a pasta transformou-se um uma gelatina pegajosa com a qual mais tarde, me mandaram
besuntar todo o corpo.
Tendo concluído os preparativos nós esperamos o pino de às
seis horas de aquela manhã e começamos a iniciação
propriamente dita que me tornaria um verdadeiro caçador.
Pra início de conversa me foi ordenado que retirasse toda a roupa e ficasse
como nasci (com as transformações normais de a idade de trinta
e cinco aninhos bem vividos).
Depois me ordenaram que besuntasse todo meu corpo (inclusive cabelos e barba)
com a gelatina. Depois de bem besuntado (somente escapou o globo ocular) me
foi ordenado que entrasse na "esteira" (posteriormente fui informado
que era um runkó verdadeiro). Ao fazê-lo, quando meu pé
direito tocou a "esteira" me senti leve, quase flutuando, e me subiu
um formigamento por dentro de o corpo que ficou por alguns instantes agulhando
o alto de a minha cabeça. Foi colocado o sabre fincado em o chão
em frente a o runkó.
Mandaram-me sentar em a "esteira" e quando me cansasse poderia me
deitar, pois ficaria ali até o pingo de às seis horas de a noite
de a Quinta-feira próxima. Ainda me informaram que a o sair dali seria
um caçador de verdade e se não agüentasse o "tranco"
apitasse em um apito que me deram e que o tenho até hoje. Esse apito
consiste em um coco de Dendezeiro com um pequeno buraco feito por uma larva
que lhe come a amêndoa.
Durante todo o ritual meu guia e seu colaborador se alternavam em uma vigília
constante com visitas a certa distância, mas nunca se aproximaram e nem
falavam nada.
Traduzir em palavras as sensações e emoções por
mim sentidas e vivenciadas é realmente impossível.
Em aqueles três dias e duas noites completos tudo que um ser humano pode
sentir eu senti: alegrias e tristezas intensas, prazeres e suplícios
inimagináveis, medos terríveis, dores quase insuportáveis,
desconfortos e confortos físicos, sono, fome e sede. Às vezes
sentia uma solidão e um abandono como se somente existisse eu no mundo.
Outras vezes me sentia meio a uma multidão. Um detalhe marca minha existência
até hoje: durante o tempo que estive em o runkó não fui
molestado por nenhum inseto e os animais silvestres me ignoraram completamente,
pois ficavam por perto se comportando normalmente como se ali não existisse
eu, um homem, o maior predador de toda a biosfera.
Minutos antes de o pingo de às seis horas de a noite de a Quinta feira
o meu guia e seu colaborador vieram e se sentaram em a "esteira" dentro
do runkó formando um triângulo comigo e nos demos as mãos.
Em este momento começou uma tempestade com muita chuva e com uma violenta
ventania retorcendo as árvores. Em este momento um imenso galho de a
Gameleira quebrou-se e caiu bem próximo a o runkó. (Quando eu
escutei o barulho de o galho quebrando e caindo quis me levantar, mas fui advertido
pelo meu guia com um sinal de mão (aperto forte) e a palavra: Atotô,
palavra esta que posteriormente fui informado significar: Silêncio, escutai;
hora da devoção.)
Desfeito o triângulo, e tendo o meu guia e seu colaborador se levantado
e saído de o runkó, me foi ordenado que me levantasse e me foi
entregue o sabre (que estivera fincado em frente à "porta")
por meu guia com uma sutil reverência e a informação: -
Use somente quando for preciso. (o sabre é verdadeiro e pertencera ao
avô de o meu guia que o trouxera da guerra do Paraguai e eu o retenho
até hoje em meu poder) A o pegar em o sabre senti um peso imenso em o
meu braço como se o sabre pesasse toneladas e ouvi gritos que demonstravam
dores e prazeres intensos.
Foi me ordenado que saísse de o runkó e fosse até o riacho
que passava próximo de ali e me banhasse. A Lua quase cheia estava clareando
e a noite era quase um dia.
Depois de ter tomado banho e retirado toda a geléia (que se transformara
em uma espécie de casca dura), me vesti e voltamos para casa. Foi-me
advertido: - Mulher só depois de a outra Lua cheia depois de essa de
amanhã.
Aqui cabe um adendo: Em o Sábado seguinte fomos dar uma caçada
de corso e a o passarmos por a Gameleira não havia nenhum galho em o
chão e nem havia nenhum galho quebrado. Quando perguntado o meu guia
e seu colaborador apenas sorriram e o colaborador disse: - Ele ainda não
viu nada!
A mim, me parece que a partir de aquele momento eu me tornei um verdadeiro caçador,
mas não um caçador comum que procura, espera e abate a caça
para seu sustento e dos seus, mas um caçador especial: O caçador
de mim mesmo. Até hoje não sei realmente em que fui "feito",
e em que rito, mas que fui "feito" fui e muito bem "feito".
Hoje, trinta e dois anos depois de a minha experiência eu continuo um
eterno Abyam procurando tentar compreender os mistérios de a Mãe
Natureza e de seus "auxiliares" os quais na fé que abraço
chamam-se: Orixás/Vodunces/Inkices.***
Depois de nos despedirmos, pois eu voltaria a meu lugar de origem exclamei
cá para meus feche-clairs (não se usa mais botões): - Como
eu gostaria de ser este ancião!