A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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BEIJOS

(Mafabami)

Nos últimos anos, Aglaé, amiúde, prestava atenção naquela flor. Havia uma bondade, um dar-se, um florir-se generosamente nos pés de hibiscos. Inverno, verão, chuva, sempre. O ano inteiro, o tempo todo, constantemente nalgum lugar uma árvore daquela mostrava flores. Por mais inóspitas que fossem as condições do lugar, do solo ou do clima, o "beijo" nunca sumia da paisagem. Sim, estava no dicionário, beijo era uma das formas pelas quais era conhecida a flor do hibisco.

Aquela, passou a ser sua árvore preferida, uma planta que nada exigia. Esparramava simplesmente seus beijos gratuitos por sobre muros, através de cercados, por toda parte. Até em beira de estradas poeirentas de fazendas, até em praças urbanas com freqüentes descargas de carro.

A fotógrafa tinha um sonho: um dia faria um livro todinho só com fotos daqueles beijos. A variedade de cores e disposição de pétalas dariam até mais que um livro. Começou a nascer uma amizade entre as duas, a planta que produzia beijos e a moça que desejava comprovar-lhe a pujança através de fotos.

Naquela manhã, desceram a pé pela estradinha da fazenda e foram conhecer a cachoeira logo adiante. O grupo estava reunido para confraternizar e usufruir o ecoturismo crescente naquele município.

Aglaé levava sua câmera fotográfica pendurada ao colo, de prontidão para clicar os amigos, uma cena, um vegetal, um animal interessante...

Bem atrás do restaurante, a alguns metros da piscina natural (que se formava pelo salto do rio) surgia junto à barranca argilosa uma cerca viva... de hibiscos!

As outras pessoas não notaram mas Aglaé ficara para trás observando...

Eram beijos jogados para o alto, para os lados, doados para a ensolarada manhã! A jovem levou a câmera ao rosto e começou a se deslocar buscando ângulos especiais para capturar o maior número de flores. Ajustando as lentes percebeu que tinha companhia. Vários beija-flores, sorviam os mimos-de-venus! Cuitelinhos, como também eram conhecidos por alguns, os colibris se fartavam nos hibiscos floridos. Os amigos de Aglaé já haviam atravessado a ponte pênsil e do outro lado organizavam um churrasco. Só ela enxergava aquela festa? Cada vez mais convencia-se de que era necessário publicar hibiscos floridos e mostrar como eram fartamente bonitos. Será que ninguém se apaixonava por tanta entrega, tantos matizes, tantos mimos, tantos beijos explicitados deixando-se agora furtar pelos colibris?

Devagarinho, recolocando ao colo sua máquina, a fotógrafa manteve-se quieta olhando as pequenas aves. Chegavam trissando, pairavam no ar e com seus privilegiados bicos recolhiam o néctar. Os doces beijos de cada maria-sem-vergonha (outro nome pelo qual é conhecida a flor do hibisco) iam sendo roubados pelos irrequietos passarinhos. Presa à sua haste, cada flor ondulava, estremecia levemente, quando o beija-flor a invadia de surpresa. Ele ia fundo, aquele bichinho sabia tudo sobre flores, pensou Aglaé. Rapidinho elas lhe entregavam a doçura produzida. A moça sentiu-se flor de repente. Lembrou do seu amor e o comparou aquele ousado colibri. Seu bem também a surpreendia quando buscava seu mel com a mesma vontade do beija-flor.

Aglaé comprimiu forte uma coxa contra a outra quando associou cada insistência, cada investida, do delicado animalzinho...

Bem devagar retrocedeu uns passos e encostou-se na ribanceira. Imaginou-se um pé de hibisco sob o sol que enchia de vigor suas folhas, seus ramos, sua flor...

Imaginou-se vegetal mas sentia que tinha carne... e sangue! Parecia que os seios lhe cresciam. Do outro lado do rio, os sons da turma em algazarra, representavam estar muito longe. Era gostoso estar ali, sentir todo o corpo arder, mesmo sob a roupa, debaixo daquele sol escancarado. Mantendo ainda as pernas muito unidas, Aglaé permitia-se viajar nas lembranças de carícias vividas. Fechou os olhos. Desejou muito ser um hibisco, uma maria-sem-vergonha, entregue à celebração dos beija-flores. Naquela noite, antes de dormir, a repórter consultou outra vez o nome da flor no seu computador portátil. Hibisco era também conhecido por rosa louca. Relaxar naquela cama do hotel fazenda, era algo muito difícil. Aglaé, nome com que fora batizada, era o mesmo de uma das três Graças, amigas de Vênus, conforme a mitologia grega. Até em seu nome próprio não deixava de ser um mimo de Vênus! Rolando em desassossego, cada vez mais rosa louca ela ansiava retornar daquele final de semana. Sentia tanta saudade do seu amor... Na volta proporia reconsiderar as brigas. Reataria seu namoro. Decidiu-se, enroscou-se e adormeceu.

(10/07/2003)

  • Publicado em: 19/08/2003
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