A Garganta da Serpente
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Bipolar: a mente diferente

(Sarah D.A. Lynch)

Desde que me conheço por gente - acho que lá pelos três anos de idade -, busquei por uma coisa apenas: coerência entre a vida que transcorria nas horas, e a vida que se me transcorria na mente.

Contudo, levei 16 anos para descobrir que minha mente funcionava um pouco diferente da mente do resto das pessoas, e que a coerência que eu buscava estaria sempre irremediavelmente fadada à solidão.

Assim, aprendi bem cedo que o preço que deveria pagar para viver de acordo com meus próprios parâmetros seria viver contra os padrões do mundo que me cercava, e, devido a isto, ficar na mira dos dedos acusatórios dos santarrões.

A razão é que recebi de meu pai, e passei a meus filhos, uma tresloucada herança: sou bipolar. Isto quer dizer que minha mente não conhece, ou não reconhece, os limites sociais da emoção. Sou socialmente inaceitável.

Quando fico zangada, sou um furacão. Quando fico feliz, danço e canto e dou risada sem medida, e sem saber quando parar. Eu sou aquela que continua rindo dez minutos depois que a piada foi dita e todo mundo já está calado.

Quando fico triste, caio em um profundo buraco escuro, do qual não me parece haver saída. Não adianta pensar positivo nem imaginar campos floridos com fadinhas flutuando sobre flores - se caio no buraco, não vejo nada a não ser o buraco. Minhas diversas internações são testemunhas de quantas vezes tentei sair atentando contra a vida.

Amigo ou amiga, ser bipolar não tem nada a ver com "demonismo". Entre o pessoal da seita gnóstico-cristã que me sequestrou os filhos, a sacrossanta Igreja Batista, um ou dois círculos espíritas e dois ou três de umbanda, passei por mais exorcismos do que a maioria das pessoas "normais", e mais do que a esmagadora maioria dos "anormais" que andam por aí estuprando crianças, roubando bancos e matando inocentes. Para dizer a verdade, as únicas instituições religiosas que reconheceram minha condição como sendo um problema de disfunção glandular foram a Igreja Católica e a Comunidade Judaica.

Por sinal, isto também não tem nada a ver com alguma mediunidade recalcada, por mais que eu tenha recebido dezenas de convites para desenvolver "meu potencial psíquico". Também não tem nada a ver com ser "Semente Estelar". Ah, e não fui visitada por nenhum ET tampouco.

O que acontece é que meu cérebro não produz uma substanciazinha indispensável à vida social humana chamada serotonina, que policia, digamos assim, a produção da adrenalina. Quer dizer, a adrenalina faz você subir, a serotonina traz você de volta ao chão. Bom, eu não tenho chão. Ou estou voando, ou estou no buraco sem fim.

Sim, há medicamentos que ajudam a contrabalançar a falta de serotonina - mas quaisquer medicamentos para isto possuem efeitos colaterais absolutamente devastadores. O uso contínuo do Lítio, por exemplo, o mais comum dentre eles, não apenas causa depressão profunda depois de apenas três meses, o que frequentemente leva ao suicídio, mas também destrói para sempre a parte do cérebro encarregada da memória, com um efeito assustadoramente parecido com a doença de Alzheimer.

Meu cérebro já está torrado desde há muito tempo. Nunca me lembro do meu número de telefone, a data de nascimento dos meus filhos, e, se bobear, não me lembro do meu próprio endereço. Já me aconteceu - e moro no mesmo lugar há mais de vinte anos!

Depois de muito tempo sob o efeito do Lítio e outras drogas similares, decidi me rebelar. Em 2006, joguei no lixo toda minha farmacopéia, inclusive os famigerados remédios para dormir, e tirei da agenda o endereço do analista. De alguma maneira, resolvi tentar, de cara limpa, dar um jeito na gangorra incontrolável do que restara da minha mente.

Hoje em dia, se não consigo dormir, assisto a um filme ou leio um bom livro, nem que isto me leve até às primeiras horas da manhã. Se, ao despertar, sinto que estou dentro de uma redoma vazia, sento-me e repito a mim mesma: "Isto está só na sua mente", até que consiga suportar ficar em pé para ir ao banheiro.

O problema é que, na maioria das vezes, isto não é verdade. As coisas não estão "só na minha mente". Minha mente bipolar apenas reflete, exageradamente, a vida ao meu redor, e a vida ao meu redor é extremamente descontrolada.

Em casos como o meu, uma vida tranqüila e uma família compreensiva são requisitos indispensáveis. Infelizmente, no despontar da crise que resultou da ida de meus filhos à guerra (e não me ajudou em nada o fato de estar em plena menopausa), meu marido resolveu que o "na saúde e na doença" era demais para ele, e se foi com uma menina da mesma idade dos meus menores. Eu fiquei com todas as contas, sem um meio de subsistência, e com dois filhos confusos demais com as conseqüências da minha crise, o abandono do pai, o irmão mais velho no Afeganistão, e os problemas normais da adolescência. A Igreja Batista veio ao nosso auxílio, é claro, trazendo consigo o trauma de suas sessões de exorcismo. Como não melhorei depois de todo o esforço e gritaria, consideraram-me "não arrependida", e os santos lavaram as mãos e foram cantar em outra freguesia. Fim do amor cristão.

Hoje em dia as coisas melhoraram bastante, ainda que eu não possa mais trabalhar. Sou tradutora e revisora, e, com a perda da memória, não consigo concatenar as idéias em duas línguas diferentes ao mesmo tempo. Se estou pensando em uma, não consigo pensar na outra. Diversos amigos bem intencionados, e dezenas de outros nem tanto, já tentaram me convencer de que meu problema é medo, ou mesmo preguiça, e não adiantou de nada tentar explicar que meu cérebro é um amontoado de células queimadas por remédios, e que nenhuma sessão de auto-ajuda ou quick-píck-me-up vai fazer com que elas renasçam das cinzas.

Outro fator positivo nos últimos anos foi o retorno de meus dois filhos mais velhos do Iraque, apesar de feridos (um deles ficou um mês em estado de coma). Eles agora estão tentando reconstruir suas vidas, destroçadas pelas guerras, tanto quanto eu estou tentando reconstruir a minha com seus irmãos menores.

Então aqui estou, vivendo até que bastante bem, se levarmos em consideração a vida de mais de noventa por cento do mundo. Até tenho, esporadicamente, uma TV de alta definição, internet e uma empregada para cozinhar (nunca consegui desvendar os segredos de uma cozinha). Digo esporadicamente porque a Eletropaulo me corta a eletricidade a cada dois meses, a Sabesp me corta a água a cada três, a Telefonica e o Speedy me desconectam a cada quatro, e a Net Cabo me corta a TV religiosamente todo dia 27, sem falta. Ocupados que estão com escola, amigos, concertos de rock, praia, compras no shopping e jogos de futebol no Morumbi, meus filhos se esquecem de enviar as contas para o pai. Coisas secundárias ficam sempre "para depois" quando se tem vinte anos, e o "depois" é uma data indefinida para além do momento. "Qualquer hora, mãe, mas não agora - que saco!"

Enquanto isto, não tenho um tostão no meu nome, nem para pegar um ônibus, muito menos para pagar as tais contas - quanto mais para sair e fazer umas comprinhas femininas, ou ir ao cinema, a um concerto, a uma exposição de pintura. Então vivo 31 dias por mês - ou 30 - dentro das paredes de minha casa, que, por sinal, está caindo aos pedaços. A pia do lavabo caiu no mês passado, e ainda está lá - inútil e apoiada numa lata vazia de leite em pó. Meu quarto tem goteiras (o balde já faz parte da decoração dos dias de chuva), a tinta das paredes está despencando, com o mofo acumulado devido ao encanamento de setenta anos de idade que jamais foi modernizado, a porta da máquina de lavar pratos é fechada com um saco de supermercado, e o teto do microondas está grudado com fita adesiva. O gato se encarregou de desfiar o estofado dos móveis da sala, a empregada, de quebrar os vidros da janela.

Tudo isto para dizer que, além de bipolar, tenho uma vida tirada direitinho de um filme de Buñel - principalmente aquele em que as pessoas se encontram fechadas em um quarto do qual querem sair, mas não conseguem, ainda que as portas e as janelas estejam abertas. Afinal, um dos sintomas do bipolarismo é a síndrome do pânico.

Apesar de tudo, ainda estou aqui. Completamente impotente frente às coisas normais da vida, como comprar o pão para o café da manhã ou me lembrar de tirar o arroz do fogo, pelo menos posso decidir se vou ser íntegra e honesta, mesmo se o mundo assim-chamado "são" se entrega ao roubo, à mentira e ao engodo. Posso continuar lutando com palavras, mesmo se o mundo "são" já decidiu que preconceito, crueldade e separativismo são aceitáveis, então para que se preocupar.

E também posso encorajar outras pessoas que, como eu, possuam uma mente diferente dos demais, ou sejam portadoras de alguma doença que lhes esteja corroendo o corpo. Mesmo que apenas para dizer-lhes: eu entendo.

Não sei se há alguma recompensa "lá em cima" para todo nosso labor e todas nossas penas por aqui. As pessoas que me juram de pés juntos que sim, isso tudo existe, geralmente são as mesmas que me lançam as mentiras mais cabeludas, e me torcem o nariz por ser diferente, acenando-me com os fogos do inferno.

Seja como for, sei que há uma enorme paz em deitar a cabeça no travesseiro à noite, ainda que seja tarde da noite, e dizer: HOJE EU FIZ O MELHOR QUE PUDE.

Talvez você, amigo ou amiga, esteja, agora mesmo, passando por momentos terríveis, dores imensas, buracos negros intermináveis. Se este for o caso, espero que, de alguma maneira, compartilhar minha realidade com você lhe tenha sido um consolo. Ajuda saber que não estamos sós, e ver a vida sob outra perspectiva.

Aconteça o que acontecer, por maiores que forem suas penas, por favor mantenha-se verdadeiro e íntegro. Como disse, há uma beleza imensa em deitar a cabeça à noite, sabendo que você fez o melhor que podia, e seu coração permaneceu puro apesar de tudo, até mesmo seu corpo ou sua mente, estar caindo ao seu redor.

E o rosto que olhar você do outro lado do espelho, quando despertar pela manhã, se tiver olhos verdadeiros - por mais inchados e vermelhos que se encontrem -, será sua companhia mais preciosa. Isto pode não parecer um consolo muito grande, quando tantos mentirosos, ladrões e assassinos passam pela vida aparentemente incólumes, rindo felizes, mas acredite - a paz que advém de uma consciência limpa é o maior poder que já foi concedido ao homem.

Pense nisto, e tire suas forças deste poder, amiga ou amigo. Afinal, esta é a única paz verdadeira que há - a paz apesar da tormenta.

E esta é A PAZ DOS INOCENTES.

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