1. O Chamado do Shofar
Meu nome é Benny - bom, é Benjamin, mas foi encurtado para Benny.
Eu tenho 12 anos, mas queria ter 13. Mas isto não interessa agora. Hoje
é um dia especial, e vou explicar para você por que.
Hoje, ao por do sol, começa o primeiro dia do sétimo mês,
Tishrei - sabe, mais ou menos em setembro ou começo de outubro.
Mas os nossos dias começam ao por do sol e não ao amanhecer. Nós
vamos para a Sinagoga bem cedo, porque nos Feriados Santos a sinagoga se enche
de gente que nunca vai lá durante o ano, e daí é difícil
encontrar bons assentos. Minha mãe fica levantando o nariz por causa
de toda aquela gente, mas eu gosto. Imagine que ela queria que eu me sentasse
com ela na ala feminina, porque ainda tenho 12 anos, mas daí eu disse,
olha, ninguém se senta com mãe na sinagoga! Ela disse que
nunca se sabe o que pode acontecer numa multidão, e ficou me enchendo
o saco. Mas fiquei na minha: vou ficar com os homens. Afinal, sou quase um homem!
Bom - mas não era disto que eu queria falar, mas sobre Rosh HaShanah
- o Dia do Julgamento. Então, antes que o sol se ponha, vamos todos à
Sinagoga. Minha mãe prendeu meu armelkeh (tem gente que chama
de kippah - sabe, aquilo que se usa na cabeça) com um grampo,
porque ela disse que ele vai cair. Mas meu pai não usa grampo!
Pois é. Mas agora eu me perdi na história que estava contando.
Ah, é - hoje é um dia especial, porque é o começo
de Rosh HaShanah, que dura dois dias. Diz a oração do Mussaf:
"Hayom harat olam... Hoje é o dia do nascimento do mundo. Hoje Ele
convoca em juízo todas as criaturas do universo..."
Tudo começa com o toque do Shofar, que é um chifre de cordeiro.
Ele vai soar 100 vezes até Iom Kippur. Ele anuncia o nascimento
de Adão e Eva, o primeiro homem e a primeira mulher, e o começo
da humanidade. Eu me pergunto por que todo mundo não comemora Rosh
HaShanah, se é para todo mundo. Sei lá. Meu pai disse que
cada ser humano deveria dizer "o mundo todo foi criado apenas por minha
causa", porque cada pessoa é um universo dentro do universo,
mas que tem gente que pensa que é dona do mundo. Ele disse que a frase
não tem nada a ver com isto, mas que quer dizer que cada pessoa tem sobre
si a responsabilidade por todo o restante do mundo.
Talvez seja por isto que o resto do mundo não comemora Rosh HaShanah.
Voltando ao assunto, o som do Shofar é um chamado aos julgamentos de
D´us, que vão ser confirmados em Iom Kippur, o Dia da Expiação.
A gente fala em Iom Kippur noutra história, ok? Mas no novo ano a gente
examina não só o que fez, mas também o que deixou de fazer.
Meio complicado - eu fico pensando na lição de casa que não
fiz! Será que D´us vai ser misericordioso com isto? Porque o professor
não vai, com certeza. Oy vey...
Bom -Rosh HaShanah dura dois dias e não um, porque o primeiro
dia é de puro julgamento divino (que meu pai disse ser um atributo de
Guevurah, um dos portais da Árvore da Vida, na Kabbalah), e o
segundo dia é de misericórdia (que é atributo de Malchut,
outro Portal da Árvore da Vida). Quer dizer, D´us não é
tão durão assim, que só mete o pau. Mmmm... Meu pai também
é assim. Durão mas bonzinho no fim. Será que o professor
também é assim? Duvido.
2. Doce Como o Mel
Shanah Tovah! Um bom ano! É assim que saudamos uns aos outros
a partir do toque do Shofar. A frase inteira é "L'shanah
tovah tikatev v'taihatem" , ou "L'shanah tovah tikatevi v'taihatemi"
para as mulheres, e significa "Que você seja inscrito e selado para
um bom ano".
Depois da sinagoga, vamos para casa para o jantar que eu mais gosto. A mesa
vai estar abarrotada de doce, e isto porque devemos esperar por um ano doce
como o mel.
A hallah, aquele pão trançado que a gente come todo Shabbat,
é redonda em Rosh HaShanah, e é doce. Mmmmm... Há
potes de mel espalhados pela mesa (e me diga só, por que a minha mãe
cobre a mesa com a melhor toalha, que ainda por cima é branca, num dia
como hoje? Daí ela reclama que a toalha fica toda manchada!). Bom. A
gente mergulha a hallah no mel, e é uma delícia! Há
também maçãs para mergulhar no mel, e tzimmes, que
é cenoura com mel. Posso não gostar de cenoura, mas assim qualquer
um gosta.
Neste dia a gente sempre come peixe. Minha mãe encomenda o peixe uma
semana antes, e coloca na banheira. Ela disse que na véspera todo mundo
vai para a peixaria e é difícil comprar coisa que preste, então
compra de antemão e a gente tem que tomar banho de chuveiro por uns 7
dias! A minha irmã Hanny sempre chora quando é hora de matar o
peixe para cozinhar. Ela quer que ele fique como bicho de estimação!
Daí ele é servido com a cabeça e tudo, para lembrar que
um dia Israel não vai ser mais a cauda, mas a cabeça. Meu pai
sempre cita: "E o Senhor te porá por cabeça, e não
por cauda, e estarás em cima e não debaixo, quando obedeceres
aos mandamentos do Senhor teu D´us, que hoje te ordeno, para os guardar
e fazer". Isto está no Deuteronômio 28:13. A gente decorou
isto na Yeshivah.
Já que D´us quer que a gente tenha responsabilidade pelo mundo
todo, isto quer dizer que ser cabeça não deve ser nenhum piquenique!
3. No Fundo das Águas
Quando amanhece, vamos até o riacho que fica no fim da nossa rua, para
a oração do Tashlich. Antes da sinagoga, no dia anterior,
minha mãe fez a gente escrever em pedacinhos de papel tudo o que a gente
fez ou deixou de fazer durante o ano. Eu tive que usar uns 10 pedaços
de papel. Daí, quando vamos ao lago, jogamos esses papeizinhos na água.
Jogamos também pedaços de pão, e os peixes vem e comem
tudo. Os pães, não os papéis. A gente faz isto por causa
do que diz o Tashlich - "E D´us lançará todos
os seus pecados no fundo do mar."
Depois de lançar os papéis e os pães na água, sacudimos
as pernas das calças - ou a bainha do vestido - e nos livramos das coisas
ruins que nós mesmos fizemos (ou deixamos de fazer).
Muita gente faz tudo isto antes de ir pra sinagoga, mas minha mãe diz
que daí a gente vai com os sapatos sujos de barro, então ela colocou
o Tashlich para depois. Meu pai reclamou, mas ela terminou vencendo,
já que isto é só um costume, e não está no
Talmude. É só tradição. Quando uma coisa
está no Talmude, ele não se dobra, não. Ah, Talmude
é o Livro Sagrado - os cinco livros de Moisés e mais os comentários
dos Sábios. Ele tem 12 volumes com uma letrinha microscópica,
fora o que está escrito nas margens. E meu pai quer que eu estude a coisa
toda. Oy vey!
4. O retorno
De Rosh HaShanah até Yom Kippur há dez dias. Junto
com os dois Feriados, este período se chama Teshuvah - o Retorno.
Meu pai disse que não é só um retorno às mitzvot,
as nossas obrigações, mas também um retorno ao que a gente
realmente é, lá no fundo. Ainda não sei bem nem o que eu
sou na superfície, quanto mais no fundo, mas ele disse que é porque
ainda tenho só 12 anos. Ai, que raiva!
Em Rosh HaShanah nosso destino ainda não foi selado. Quer dizer,
ainda há tempo para que a gente se dê conta de tudo o que fez e
do que não fez, e daí se arrepender perante D´us em Yom
Kippur. Eu já disse, Ele não é assim tão severo!
É como meu pai, que fica dando uma chance atrás da outra para
que a gente volte atrás, volte a ser melhor do que é.
Tem muita coisa acontecendo durante os dias de Teshuvah, mas isto aqui
já está comprido demais. Afinal, como diz meu pai, para um verdadeiro
judeu, todo dia deveria ser um dia de Teshuvah, e toda pessoa deveria
revisar tudo o que fez e o que não fez, e não para parecer mais
boazinha perante D´us, mas para ser mais honrada, digna e útil
aos demais.
Olho para ele, ali parado com seu Talith - o manto de oração
- sobre a cabeça, seu livro de orações nas mãos
- e penso que já sei o que eu gostaria de ser. Gostaria de ser como meu
pai.
Nota: Rosh HaShanah, neste ano de 2010, cai nos dias de 8 a 10 de setembro. Celebra-se a entrada do ano 5771.